Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.
Por certo estas palavras de Antoine Saint-Exupéry fazem sentido em todas as épocas, também hoje ecoam como provocação, desafio, como compromisso, como urgência para salvar o mundo em que vivemos. Se nos deixarmos guiar apenas pela razão, pela inteligência, cedo nos tornaremos centro ou máquinas pensantes, desligadas dos outros. A inteligência resolve muito coisa, faz progredir, mas sem coração desumaniza-nos, desirmana-nos, cria novas castas e divisões, novas formas de escravização. Com a Inteligência Artificial, os riscos multiplicam-se.
Regresso, esta semana, à autobiografia do Papa Francisco, Esperança, em que o santo Padre vinca esta inevitabilidade do coração e do amor para resgatar a humanidade dos algoritmos e da frieza da inteligência. Uma humanidade que não chora os seus idosos, que não se deixa tocar pelos pobres, que ignora os mais frágeis, que esquece as suas raízes, tenderá a desaparecer, a autodestruir-se.
Recordando o momento em que teve necessidade de andar de cadeira de rodas, o Papa Francisco, na sua autobiografia, mete o coração ao barulho: “A Igreja governa-se com a cabeça e o coração. O mundo só pode mudar partindo do coração”.
Bento XVI reconhecia que a globalização nos faz vizinhos, mas não irmãos. Próximos pelas redes sociais, tomando conhecimento do que se passa do outro lado do mundo em tempo real, não sabemos e não queremos saber o que se passa com vive no nosso bairro, no nosso prédio ou na nossa rua. E não se trata de coscuvilhice, mas de nos inteirarmos das suas necessidades, dos seus sofrimentos, concedendo-lhes um olhar humano, uma voz, um abraço, uma presença que acolhe e reconhece o outro como pessoa.
O ecrã não abraça e, com o passar do tempo, não comove, quanto muito acelera a vontade de ver mais sangue, mais desgraças, mais fenómenos violentos, mas não abraça, não conforta o corpo, não toca a pele, não mexe com a alma. “O verdadeiro amor é inquieto. O oposto mais quotidiano ao amor de Deus, à compaixão de Deus, à misericórdia de Deus, é a indiferença. Para aniquilar um homem ou uma mulher, basta ignorá-los. A indiferença é agressão. A indiferença pode matar. O amor não tolera a indiferença. Não podemos ficar de braços cruzados, indiferentes, nem de braços caídos, fatalistas. O cristão estende a mão… Basta um só homem, uma só mulher para que haja esperança, e aquele homem e aquela mulher podes ser tu… a esperança é a virtude de um coração que não se fecha no escuro, não para no passado, não sobrevive no presente, mas sabe ver lucidamente o amanhã”. Prossegue o Papa Francisco dizendo que, “a felicidade é sempre um encontro, e os outros são uma ocasião concreta para encontrar o próprio Cristo. A evangelização, no nosso tempo, será possível por contágio de alegria e de esperança… A ternura não é senão isto: o amor que se torna próximo e concreto. É usar os olhos para ver o outro, usar os ouvidos para ouvir o outro, para ouvir o grito dos pequenos, dos pobres, de quem teme o futuro… E, depois de olhar, depois de escutar, não há o falar. Há o fazer”.
“Quando o específico do coração não é apreciado – continua o papa Francisco –, perdemos as respostas que a inteligência não pode dar por si mesma, perdemos o encontro com os outros e perdemos a história, as nossas histórias, porque a verdadeira aventura é aquela que se realiza a partir do coração. No final da vida só isto contará”.
Não esqueçamos, “somos feitos de vida e para a vida. Somos feitos de relação. Somos feitos de amor e para o amor, e os nossos amores, os nossos entes queridos, não desaparecem no escuro, mas esperam-nos na luz, na plenitude daquele amor. Somos filhos prediletos, feitos para coisas grandes, para sonhos audazes… Nós somos o nosso coração, pois é isso que nos distingue, que nos configura na nossa identidade espiritual e que nos põe em comunhão com as outras pessoas. Só o coração é capaz de unificar e harmonizar a nossa história pessoal”.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 95/39, n.º 4815, de 27 de agosto 2025