Chegaremos, nesta semana, ao fim da troca de argumentos do julgamento movido pelo conjunto “Anjos” contra a humorista e radialista da Rádio Renascença Joana Marques. Depois, deve seguir-se o julgamento. Sim, no meu tempo, chamávamos “conjuntos”, o que já denuncia algo sobre este grupo de dois rapazes que se meteu numa alhada sem qualquer necessidade.
Para quem vive em Marte e ainda não percebe o que está em causa, a situação explica-se de forma muito simples: a humorista publicou um vídeo nas suas redes sociais, com a compilação de vários momentos relativos a uma atuação celestial dos “Anjos”, durante umas corridas no Autódromo do Algarve, em que a dupla de cantores cantava o hino, mas onde eram visíveis alguns problemas técnicos, sobretudo de som. Ou seja, o vídeo era uma forma de brincar com um problema técnico, alheio aos próprios “Anjos” (!). O som aparecia repetido, dobrado, apenas isso. Resultado: processo em tribunal angelicamente ordenado pelos “Anjos” que, devido a alegados cancelamentos de espetáculos e repercussões na saúde dos cantores na sequência da publicação do tal vídeo, pediram a tal indemnização de mais de 1 milhão de euros.
Diz-nos a mais elementar regra de assessoria de comunicação, que os jornalistas adoram números e foi este o mágico valor que deixou toda a gente a pensar neste caso. É claro que vivemos em Portugal e, desde logo, as trincheiras formaram-se de um lado e outro. Os argumentos, esses, ficaram perdidos algures. Por estes dias, perco tempo a pensar na quantidade inacreditável de críticos de cinema, músico, literatura, teatro que sempre existiram na História da Humanidade e que podem gabar-se certamente de nunca terem ido a tribunal perante a ameaça de uma indemnização tão generosa.
Joana Marques não é crítica de música, embora se tenha sentado no júri daquele programa da SIC, “Ídolos”, onde dizia se as pessoas cantavam bem ou mal. Os “Anjos” não gostaram do vídeo, da crítica implícita, e pediram logo o que os cobardes querem: apagar o vídeo e fica tudo bem. Voltam a não compreender que isso não resolveria o “problema”. Relembrando um sucesso da banda, o vídeo “Ficará” (mais perto do céu/mais perto do mar). Tal como o ar que respiramos. E um dos principais dramas deste caso nem é a ignorância profunda dos cantores sobre o vídeo publicado. Foi termos percebido que família, produtores, fãs, gente anónima, continua a não entender que o humor não é, de modo nenhum e em abstrato, uma arma mortífera. Ninguém invadiu o Império Austro-húngaro por causa de uma piada. Jamais alguém entrou em Gaza devido a uma piada sobre palestinianos. Consta que os campos de concentração não foram montados debaixo de um chorrilho de anedotas sobre alentejanos.
Fábio Ribeiro, in Voz de Lamego, ano 95/33, n.º 4809, de 2 de julho 2025