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Um pedaço de ternura… e de humor

“Recolheram os pedaços que sobraram” (Jo 6, 12), é o mote da Carta Pastoral de D. António Couto para este ano pastoral. Com Jesus, chega a abundância do pão, da vida, a abundância do amor, em primeiro lugar, do amor de Deus para connosco, num movimento que leva a responder a esse amor, para a frente, pedindo novamente emprestada a expressão ao nosso Bispo, pois na verdade respondemos ao amor de Deus por nós com o amor aos irmãos. Dirá são João da Cruz, amor com amor se paga. O amor infindo de Deus, manifestado e levado à plenitude pela vida de Jesus, expressa sobretudo no mistério da Sua paixão redentora, exige que paguemos com o mesmo amor, o que se faz amando do mesmo modo e como Ele dando a vida pelos irmãos.

Vale a pena reler a passagem do Evangelho do qual foi extraída esta expressão: “Jesus, então, levantando os olhos e vendo que uma numerosa multidão vinha ter com Ele, disse a Filipe: «Onde compraremos pão para que eles comam?». Dizia isto para o pôr à prova, pois Ele sabia o que estava prestes a fazer. Respondeu-lhe Filipe: «Duzentos denários de pão não lhes chegam para que cada um receba um pouco». Disse-lhe um dos seus discípulos, André, o irmão de Simão Pedro: «Está aqui um rapazinho que tem cinco pães de cevada e dois pequenos peixes. Mas que é isso para tanta gente?». Disse Jesus: «Fazei-os reclinar-se». Havia muita erva no lugar. Reclinaram-se, então. Os homens eram cerca de cinco mil. Jesus tomou os pães e, depois de dar graças, distribuiu-os aos que estavam reclinados, e fez o mesmo com os pequenos peixes, tanto quanto quisessem. E quando ficaram saciados, disse aos seus discípulos: «Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca». Recolheram-nos, pois, e encheram doze cestas com os pedaços dos cinco pães de cevada que sobraram aos que tinham comido” (Jo 6. 5-13).

O que sobeja não são restos, é verdadeiramente abundância de vida, de alimento, de amor e de vida nova! A multiplicação dos pães é imagem da Eucaristia, na qual Jesus Se torna alimento, dando-nos o Seu corpo e o Seu sangue, nas espécies do vinho e do pão. A Eucaristia é um banquete abundante onde há lugar para todos, é caminho, é remédio e salvação para quem se deixa tocar pela graça de Deus e transformar pelo Seu amor. Diante dos obstáculos e das dificuldades, os discípulos paralisam e apresentam novos entraves. Assim é connosco! Muitas vezes! Tornamo-nos especialistas em detalhar as dificuldades e os contratempos. Jesus olha para o pouco – cinco pães de cevada e dois pequenos peixes – e vê que há potencialidade… já não falta tudo e com um pouco de boa vontade dará para todos. O milagre, escalpelizado pelos entendidos, pode ser da multiplicação ou da partilha. A multiplicação faria com que os cinco pães se convertessem em centenas de pães e igualmente os peixes; a partilha faz com que quando mais se dá parece que mais há para dar, é um cesto sem fundo, tiram-se pães e mais pães e continua a haver pão para todos, para a multidão que está por ali, mas, sobejando tantos cestos, dá para muitas multidões! Olhando para o mundo atual, há abundância, pois é possível a multiplicação rápida, falta o milagre da partilha, falta fazer chegar os pedaços que sobraram a todo o mundo.

Na homilia do funeral do Pe. João André, D. António Couto contou um episódio em que alguém lhe fez a seguinte pergunta: sr. Bispo, e se depois da morte não existir mais nada? A resposta do Sr. Bispo leva outra pergunta: e se antes da morte não houver mais nada? Parafraseando-o, se antes da morte não houver um pedaço de ternura, um pedaço de amor, um pedaço de alegria, um pedaço de humor, um pedaço de bondade… então teremos morrido antes de morrer! Não adianta preocupar-nos com o que existe depois da morte, se não nos ocuparmos com a vida, com o que está antes… é que a vida eterna começa agora, hoje, no tempo e na história.


Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 94/15, n.º 4743, de 21 de fevereiro de 2024.

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