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Um mundo em convulsão

Num primeiro olhar vislumbramos um mundo em ruína, aos retalhos, marcado por conflitos, pela guerra, pelas divisões e nacionalismos, por milhentas formas de egoísmo. O tempo das ditaduras parecia coisa do passado. O tempo das guerras sanguinolentas pareciam coisas de séries e filmes americanos. Não tanto assim! A inspiração dos dramas televisivos e cinematográficos, afinal, não é uma realidade distante, nem se afastou demasiado, esteve sempre à espreita. A violência gratuita, a pobreza extrema, os guetos, o tráfico de droga e de seres humanos, a corrupção, o levantamento de muros, físicos, ideológicos, religiosos, políticos, a xenofobia e racismo, os extremismos de esquerda e de direita fazem-nos entrever um mundo sem conserto. Nunca a expressão do Papa Francisco foi tão certeira, vivemos uma terceira guerra mundial aos pedaços, em todas as latitudes, em muitas partes do mundo, uns pedaços mais visíveis e outros pedaços mais encobertos.

Deus criou-nos, não isoladamente, mas em povo, em comunidade, para vivermos como iguais, auxiliares, próximos, irmãos. Mas também nos criou livres, dando-nos a possibilidade de O negar e de seguir outros sonhos, ideais e outras vontades. A história que nos é apresentada no livro dos Génesis evoca dois pratos da balança: a harmonia e a desordem, a cumplicidade e a inveja, a criação e a destruição, o jardim e o exterior, a vida e a morte, a família e o egoísmo.

Adão e Eva, figuras-tipo dos primeiros seres humanos, vivem harmoniosamente, entre eles e com a natureza que os envolve, mas cedo cedem ao egoísmo, arrebanham o fruto da árvore para si e para os seus, quando a abundância permitia a partilha desapossada dos bens destinados a todos. Caim e Abel, os filhos dos primeiros pais, cedo deixam de ser irmãos, pois o mais velho assassina o mais novo por o considerar uma afronta, um inimigo. O ciúme e a inveja destroem qualquer relacionamento.

Para haver conflito basta haver duas pessoas! Se as diferenças forem insanáveis e mais importantes que o diálogo, o respeito e o cuidado pelo outro, destruir-nos-emos uns aos outros.

Jesus vem ao mundo, a eternidade chega ao tempo, para que o sonho de Deus não fique perdido no passado, mas seja firmado, renovado, implantado.

O desafio cristão passa por cada um de nós se tornar melhor em tudo, não em relação aos outros, mas em relação a si próprio.

O sonho de Deus. «Não é bom que o homem esteja só: vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele». Podemos ter tudo, saúde, beleza, comodidade, mas tudo vale nada se nos faltar a companhia. A solidão é uma desgraça, é o fim do mundo! Para chorar ou para cantar, para sorrir ou para resmungar, para dançar ou para abraçar, precisamos de alguém semelhante a nós! Não apenas um espírito! Não apenas um ser que não nos responde (logo que não é responsável por nós)!

«Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem». Somos criados uns dos outros, estamos uns nos outros, sem os outros falta-nos muito mais que uma costela, falta a vida, o mundo, o chão, a alegria, o sentido e a razão porque estamos vivos! E quando alguém parte, morrendo, a sua presença continua a dar sentido ao que fomos e ao que somos, ainda que aperte a saudade!

Deus criou-nos livres, à Sua imagem e semelhança, com a capacidade de amar e ser amados. Criou-nos para os outros e é com eles que somos verdadeiramente felizes. Se nos falta/m o/s outro/s, andaremos meio-cheios, meio-vazios! Reconhecemo-nos no face-a-face, no frente-a-frente. Os outros fazem-nos perceber quem somos, são como que o espelho onde refletimos o nosso olhar e a nossa vida.

Deus aposta em nós, na nossa liberdade, mas também no nosso compromisso e na capacidade de construirmos uma casa de todos para todos!


Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 94/45, n.º 4773, de 9 de outubro de 2024.

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