- Aparenta ter mais de 100 anos e está – sozinho! – na maca de um serviço de urgência. Um saco com medicamentos pousa sobre o lençol. Desidratado e muito magro, respira com dificuldade.
Após o atendimento, ligam para o telefone de contacto. O paciente deverá ter alta depois de hidratado. Tanto mais que permanecer no hospital aumenta o risco de infeções. A família responde ter partido de férias durante uma semana. Aquele ser humano tinha sido «despejado» no hospital. E por lá iria permanecer, abandonado.
2. No norte do país, árvores e paragens de autocarros estão cheias de mensagens. É por aquele meio que o avô envia um abraço aos seus netos que não vê há seis anos. Motivo? Um alegado desentendimento com o pai dos menores.
Esta (clamorosa) falta de empatia pelos idosos leva a que haja gerações que – no dizer de Jean-Luc Nancy – «se sintam destituídas, abandonadas, largadas à beira da estrada».
3. Numa altura em que as temperaturas sobem em todo o planeta, ainda haverá algum «lugar» frio no mundo?
Há: o coração humano. E – acreditem – o «gelo» dos corações destrói mais que as chamas que, nesta época, devoram as florestas.
4. É certo que a chuva não cai, a água não escorre e a seca é extrema, severa.
Caso para perguntar, parafraseando Sá de Miranda e António Lobo Antunes: «Que fazer quando tudo arde?»
5. Ardem as paisagens onde medraram os sonhos da nossa infância.
Ardem os trigais desamparados. Ardem as serranias descuidadas.
6. E arde – em pastos de rancor e ressentimentos – a alma deslavada de uma humanidade cada vez mais perdida.
Arde, em série ininterrupta de «ignições» letais, muito do progresso tecnológico que se «aditivou» irrefragavelmente aos nossos comportamentos.
7. Archie Battersbee terá participado no «blackout challenge», um jogo, difundido pelas redes sociais, em que se aperta o pescoço com uma corda até perder os sentidos.
Foi neste estado que os pais o encontraram a 7 de abril. Nunca mais recuperou. A morte cerebral foi decretada e as máquinas desligadas, a 6 de agosto. Todos nós «ardemos» de indignação.
8. O mundo está a «arder» com a maldade, com o destempero da linguagem, com os julgamentos apressados e impiedosos, com a fome de muitos e os gastos megalómanos de tantos.
O mundo «arde» pela globalização da indiferença, pelo egocentrismo que não se compadece do sofrimento alheio, pela busca dispendiosa da «felicidade de curta duração».
9. É preciso esfriar o que está a arder e fazer arder o que está cada vez mais frio: o coração humano (cf. Lc 24, 32).
Precisamos não só de passar pelas pessoas, mas também de parar junto das pessoas. Para lhes falar e – não menos – para as escutar, abraçar. Ainda conseguiremos «descongelar» o coração?
Pe. João António Pinheiro Teixeira, in Voz de Lamego, ano 92/39, n.º 4670, 24 de agosto de 2022