Valemos nós, as nossas preocupações, interesses, medos, prioridades, tornamo-nos o centro, prevalecendo as nossas convicções, ideias, desejos. Obviamente, fazendo parte da nossa natureza tão humana, os nossos desejos facilmente se tornam caprichos, e o que é defensável e saudável, rapidamente assume contornos de egoísmo, de prepotência, de soberba. Se os nossos interesses são satisfeitos, ainda que momentaneamente, então o mundo é bom, se não são, então há um problema, temos que ir à luta e afastar todos os que se opõem à satisfação dos nossos desejos.
Esta é a história de Adão e Eva. Num dizer muitas vezes sublinhado pelo nosso Bispo, D. António, o pecado original (ou originante) não está na recolha do fruto da árvore, mas no roubo, pela calada da noite, à revelia da fraternidade, arrebanhando o fruto só para si. Um pouco como os doutores da Lei, escribas e fariseus, fazem a lei para os outros, obrigam os demais a cumprir o que eles não tencionam, sequer, tentar. Adão e Eva recolhem o fruto que deveria ser para usufruto de todos e não apenas dos dois ou da família, entendida em sentido restrito.
Adão e Eva estariam nus? Sim, mas já antes estavam! Se recuarmos, vestir-nos e tapar as partes do corpo que consideramos púdicas, faz parte da evolução cultural. Nem sempre foi assim. Na atualidade ainda existem pequenas tribos ainda mantém grande frugalidade no vestir! Contudo não é a nudez que nos envergonha diante de Deus! Ele assim nos cruo! O que nos envergonha é o que escondemos. Adão e Eva escondem o roubo e a usurpação! Deus criou o mundo e deu-no-lo para cuidarmos e para que todos tivessem o necessário para viver com alegria e dignidade. Entretanto, concluímos que era melhor “corrigir” a vontade de Deus e viver segundo as nossas regras e os nossos desejos. Como sublinha Pascal, quando não vivemos como pensamos, acabamos por pensar como vivemos.
Antecipamos o futuro! A criação está ao serviço de uns poucos, deixando milhões a morrer à fome, gastamos hoje os recursos que ainda não temos, e que seriam para amanhã.
Em livro póstumo, “O que é o cristianismo”, Bento XVI, referindo-se à liturgia, em sentido restrito, e em geral à vida da Igreja, alerta-nos: “Se Deus já não é importante, deslocam-se os critérios para estabelecer o que é importante. O homem ao pôr Deus de lado, submete-se a construções que o deixam escravo de forças materiais e que se opõem, por isso, à sua dignidade”. Bento XVI desenvolve, dizendo que “a Igreja está em perigo quando o primado de Deus já não aparece na liturgia e, por isso, na vida. A causa mais profunda da crise que abalou a Igreja reside no obscurantismo da prioridade de Deus na liturgia”. Uma franja da filosofia colocou Deus como adversário do homem. Como não lembrar, por exemplo, Ludwig Feuerbach, para quem Deus não seria mais do que a projeção do homem. Ou como Nietzsche a decretar a morte de Deus para fazer emergir o super-homem. Lideranças que se substituíram à prioridade, prevalência e existência de Deus redundaram em ditaduras, criando déspotas que rapidamente foram endeusados, colocando a maioria em dinâmica escrava. Se matamos o Pai, se dispensamos Deus, em vez de filhos e em situação de igualdade, começamos a disputar o “vazio”, ocupando o lugar, nem que para isso seja necessário instrumentalizar, destruir ou matar o próximo. Se só Deus é Deus e O reconhecemos, então será possível reconhecer a nossa igualdade face a Ele e em relação uns aos outros, todos como filhos e, portanto, irmãos, no mesmo “patamar”, sem necessidade de nos sobrepormos uns aos outros já que o lugar está preenchido.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, Ano 93/44, n.º 4724, de 4 de outubro de 2023.