Está um final de tarde abafado, mas a rotina é sempre a mesma. Do fogão que já aquece o refugado para dali a pouco sair uma calorosa massa de carne já se escuta o genérico do programa mais emblemático da televisão portuguesa. De repente, por trás de uma parede que se divide em dois, na televisão que outrora foi o símbolo da convivência naquela casa, entra em cena a figura mais carismática daquilo que muitos ainda recordam como “a caixinha mágica”. Suspensórios por cima de uma camisa azul clara, alegria no rosto, voz inconfundível, aplausos de uma audiência numa bancada que parece gigante – mas não é. Aí está Fernando Mendes para a edição nº 3.94478 milhões d’ “O Preço Certo em Euros”. No ar desde que Vasco da Gama era uma criança que brincava aos barcos com os amigos. Mas desta vez, aquela edição parece ser diferente.
“Bem-vindos a mais um Preço Certo, na RTP, antes do telejornal”, desafia, logo, o apresentador, antes daquela musiquinha em torno do genérico do espaço informativo mais conhecido do canal público. E parece mesmo diferente o programa de hoje. D. Zulmira, que está no sofá enquanto a cebola dança com o alho na panela, repara: há candidatos diferentes, desta vez, e parecem ser conhecidos. É isso ou então há uma consulta no oftalmologista que terá de ser marcada em breve. É mesmo. Candidatos às Eleições Europeias vão adivinhar o preço dos congelados? Espera! É mesmo a ministra da covid, aquele miúdo que acabou o secundário ontem, e aquela da gerigonça. E parece que está por ali um tipo grisalho com ar de quem a vida lhe corre bem mesmo lá na quinta dele ontem tem os cavalos e a criadagem.
O Sr. Adérito também está no sofá e dormiu tanto que só acordou na montra final. A mulher corre para cozinha, mas é ela que vê o programa e quem dorme é ele. Montra final. Suspense. Agora é que vai sair o carro. Nada disso! Fernando Mendes exibe um conjunto bem apetrechado de imigrantes que pretendem entrar em Portugal. São uns sete ou dez. Como assim? Marta Temido avança: “bom, eu acho que as vidas humanas não têm preço, vamos abrir as portas e deixá-los entrar numa fila administrativa de um serviço burocrático qualquer que criámos. É novo e giríssimo. Chama-se AIMA”. Sebastião Bugalho, depois de beber rapidamente o seu “Bongo” retirado da lancheira, atira: “somos contra o pacto das migrações, a imigração tem de ter regras, não podem entrar todos. O governo da AD, do qual sou mesmo tipo… independente, não pode receber estes imigrantes”. Catarina e Cotrim nem sequer chegaram à montra final. São os mais bem preparados, mas ficaram pelo caminho. Uma coincidência.
Fernando Mendes, quase que a adivinhar que a massa de carne da D. Zulmira está no ponto rebuçado, tem mesmo de revelar o valor. “O preço desta montra final é…”. O público exulta, grita por números, outros já atiram números para arrendar casas, a loucura do costume. E diz: “Domingo saberemos”.
Fábio Ribeiro, in Voz de Lamego, ano 94/29, n.º 4757, de 5 de junho 2024.