No ano em que se comemora meio século de liberdade e democracia no país á beira-mar plantado, num país que viveu mais de quarenta anos em ditadura e opressão a Comissão para comemoração dos 50 anos do 25 de abril lançou o desafio, a todos os portugueses, de contar histórias, de reviver o passado com o objetivo de criar memórias, aprender no presente e construir o futuro.
No site oficial estão disponíveis dezenas de iniciativas: conversas, concertos, entrevistas a acontecer por todo o país.
Quando percebi a dimensão e importância desta data, que é única, logo me apercebi da necessidade de procurar memórias de Lamego antes, durante e após a Revolução.
Tentei falar com várias pessoas, na esperança de criar memórias para o futuro.
A premissa seria, obviamente, memórias de lamecenses que viveram a Revolução. Coloquei várias questões porque cedo percebi que nada sabia sobre a cidade e as suas gentes antes e após o 25 de abril. O pouco que sabia, eram memórias dos meus avós e dos meus pais, ainda que, à época, eram apenas adolescentes.
Gentilmente, quatro lamecenses deram-me o seu testemunho. De entre eles, uma mulher. Aos quatro agradeço, desde já, a amabilidade na partilha da sua história.
O que distingue estas quatro pessoas não é apenas o género, mas as vivências.
Falo-vos de Judite Amália Ferreira Gouveia, José Afonso Teixeira de Magalhães Lobão, José Manuel Ribeiro Mendonça e Rogério Henriques Barradas.
#1
“Sempre acreditei que a liberdade que se falava era, sobretudo, para os meus filhos.”
Judite Amália Ferreira Gouveia, nascida em Lamego a 25 de junho de 1942. Mulher, dona de casa, mãe, cuidadora da sua tia, esposa.
“Eu era dona de casa, sempre fui. O meu marido era dez anos mais velho que eu, não consentia que trabalhasse fora de casa. De maneira que o meu trabalho sempre foi fazer bordados, cuidar da casa e dos filhos. Mas vivi feliz.”
Como soube da notícia da Revolução do 25 de Abril?
O meu marido era funcionário público, veio a casa e disse haver qualquer coisa em Lisboa, e que não saíssemos à rua hoje. Os meus filhos eram pequenos, não percebiam na altura. Nem eles, nem eu!
Não me apercebi da dimensão que foi tudo aquilo. Pouco ouvi a rádio nesse dia.
Depois, quando o meu marido saiu do trabalho, às cinco e meia, chegou a casa e disse: Agora tudo vai melhorar, vamos ter liberdade. As mulheres vão poder votar.
E assim foi. Em 1975, pela primeira vez, fui votar.
Até hoje. Nunca falhei.
Que memórias guarda da cidade de Lamego, antes da Revolução?
A memória que mais me marcou foi, sem dúvida, a pobreza que havia. Eu andava na escola e, á noite, serviam a sopa dos pobres. Muitas colegas minhas vinham das suas casas, descalças, para comerem a sopa.
Muito vinham de Alvelos e de outras aldeias, descalços, para comer um bocadinho de sopa.
Para algumas, era a única refeição do dia. Muitas vezes dava o meu pão a uma amiga. Ainda hoje somos amigas. E ainda hoje ela me diz “Quantas vezes comi o teu pão e me mataste a fome Judite.”
O papel da mulher na sociedade foi mudando ao longo dos últimos 50 anos. As mulheres são mais livres, mais independentes. Acredita nesta mudança?
Sempre acreditei que a liberdade de que se falava era mais para os meus filhos. Mas hoje, fico feliz por ver as mulheres representadas no Parlamento. Sempre ouvi dizer que as mulheres têm um sexto sentido apurado. Gosto de as ver na televisão e de terem uma voz.
Fale-me da Revolução… Causou algum impacto a nível pessoal? E no país, como viu esta mudança?
Eu sempre tive liberdade. Casei com o homem que queria, mesmo sendo dez anos mais velho que eu. Mas começou a haver reformas, menos pobreza, salário mínimo, o abono para as crianças. Embora os meus filhos sempre o tiveram porque o meu marido era funcionário público.
O Marcelo Caetano já tinha alguma atenção para com a sociedade e, na minha opinião, se o tivessem deixado ficar, dentro da moralidade dele, que eu considerava-o um homem sério, ele mudava a sociedade para melhor. Mas não foi assim.
Fico com a memória acima de tudo, da grande diminuição da pobreza na cidade. Depois da revolução, as oportunidades eram outras, e a cidade melhorou. Já não vi tanta pobreza porque as oportunidades foram surgindo.
Judite Amália Ferreira Gouveia, ou D. Judite, como habitualmente é tratada, vive ainda hoje em Lamego com 81 anos. Cuida da casa e da Sé de Lamego. Exímia no tratamento e na decoração das flores na Igreja. Deixou-me o exemplo de partilha e o espírito de solidariedade. Comoveu-me ao contar-me que oferecia o seu pão à amiga, tão jovem e já com a consciência e o espírito de ajuda.
Que esta seja uma boa memória e, acima de tudo, uma aprendizagem.
#2
“Ouvi o Paulo Carvalho na canção ‘E depois do adeus’, sem saber que era o sinal para início da revolução.”
José Afonso Teixeira de Magalhães Lobão, nascido em Lamego a 13 de fevereiro de 1951. Natural de Souto-Côvo.
A 25 de abril de 1974 encontrava-se no Porto, na qualidade de oficial miliciano (aspirante) a prestar serviço (diligência de caráter permanente) na Direção de Serviços de Intendência do Exército.
Como soube da notícia da Revolução do 25 de Abril?
Diariamente, e antes de regressar ao quarto que me estava distribuído, passava pelo Bar da messe fazendo companhia aos oficiais de serviço.
Recordo que o Bar tinha um Rádio pousado numa mesinha a um canto da sala e sintonizado na Comercial.
Posteriormente veio a canção de Zeca Afonso ‘Grândola Vila Morena’, seguida de um comunicado do Movimento das Forças Armadas (MFA) dando conta que estava em curso um movimento para derrubar o regime e fazendo apelos à calma.
Fui de imediato acordar outros oficiais que se juntaram aos oficiais de serviço naquele dia e nos acompanharam pela noite fora ouvindo as informações que a rádio e a televisão iam dando conta sobre o progresso das operações militares.
Como descreve essa noite?
Foram momentos de ansiedade e tensão.
A revolução sairia vencedora ao final da tarde com a rendição no quartel do Carmo, do então Presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano.
José Afonso Teixeira de Magalhães Lobão, cedo percebeu que haveria mais oportunidades para lá de um horizonte chamado Lamego. Cumpriu serviço militar no Porto e aí permanece, até aos dias de hoje.
Licenciado em História, seguiu carreira política enquanto militante e Deputado do Partido Socialista.
Foi candidato à Câmara Municipal de Valongo.
Homem atento ao estado político do país, defensor do crescimento e desenvolvimento político, social e educacional.
Viveu a Revolução longe da sua cidade, mas perto daquela que viria a ser a grande conquista do país: a liberdade.
Ainda que ao longe, Afonso Lobão não esquece as suas raízes lamecenses.
#3
“Foi possível ter um país mais desenvolvido, mais culto e mais próspero.”
José Manuel Ribeiro Mendonça, nascido em Lamego a 15 de setembro de 1950.
A 25 de abril de 1974 cumpria serviço militar, como Alferes Piloto de Helicópteros em Vila Cabral, Moçambique.
Como soube da Revolução que estava a acontecer em Portugal?
Pela madrugada soube, através da rádio da Força Aérea, que tinha havido uma mudança de regime em Lisboa com apoio popular.
Como descreve esta revolução e o seu impacto?
O 25 Abril de 74 tinha como propósitos, a saída dos territórios ultramarinos, a democracia e o desenvolvimento do país.
Estes objetivos ainda estão a ser cumpridos.
A democracia e liberdade trouxe maior abertura de ideias, proporcionando uma melhor preparação aos jovens para enfrentarem o futuro.
Com a consequente entrada na União Europeia, e com a sua ajuda, foi possível ter um país mais desenvolvido, mais culto e mais próspero.
Sei que deixou a cidade há vários anos, mas, na sua opinião qual o impacto da Revolução na cidade?
Ao longo dos anos notou-se um crescimento urbanístico e uma maior abertura de espírito das pessoas.
Houve também um aumento de visitantes devido à cidade e arredores ter muitos atrativos.
José Manuel Ribeiro Mendonça, deixa-nos o testemunho de um homem lamecense a cumprir serviço numa colónia portuguesa. O próprio admite que este é redutor, e que muito ainda há para contar.
Eu conto com isso, porque muitas questões ficam em aberto.
Haverá, certamente, mais oportunidades de as partilhar. Porque abril cumpre-se diariamente.
Cedo partiu de Lamego e, até hoje, vive em Lisboa, onde constituiu família.
Fez da Força Aérea Portuguesa a sua profissão.
#4
“Todos os dias ia a pé de Arneirós para Lamego e depois voltava, novamente, a pé. Trazia um lanchinho: batatas fritas às rodelas, embrulhadas numa folha de caldo e numa folha de jornal. Graças a Deus, nunca passei fome.”
Rogério Henriques Barradas, nascido a 10 de junho de 1931. Hoje, com 93 anos, ainda se recorda com grande lucidez o antes e depois do 25 de abril na cidade de Lamego.
Com 93 anos, tem noção de uma cidade que, para muitos é desconhecida. Que memórias tem da cidade?
Eu sou de Arneirós, mas trabalhava em Lamego. Muitas vezes, eu e o meu irmão olhávamos para a cidade e dizíamos que Lamego era uma cidade triste. Sabe porquê menina? Não havia nada, para os lados do Pingo Doce e de Medelo, não havia nada, nada. Era uma cidade mesmo muito triste.
Havia muita pobreza. Havia a chamada Sopa dos Pobres, ali antes de chegar ao Colégio de Nossa Senhora da Conceição. Serviam a sopa em panelas muito grandes. Lembro-me que ia lá muita gente. Era só fome, só fome.
Eu, graças a Deus nunca passei fome. Sempre trabalhei e trazia um lanchinho feito pela minha mãe. Conheci muita gente que passava o dia sem comer nada. Nas aldeias, ainda tinham couves e batatas. Na cidade, havia muita fome.
Depois, aos 11 anos terminei a 4ª classe. Fiz o exame em julho, em pleno verão e vim de Arneirós com umas botas de pneu emprestadas.
Logo em setembro, vim trabalhar para Lamego. Ganhava 25 tostões por dia na sapataria. Dava o dinheiro todo à minha mãe.
Todos os dias ia a pé de Arneirós para Lamego e depois voltava, novamente, a pé. Trazia um lanchinho: batatas fritas às rodelas, embrulhadas numa folha de caldo e numa folha de jornal. Graças a Deus, nunca passei fome.
No Inverno, ia comer para a Quelha do Cerrado ao sol, porque tinha pouca roupa e muito frio. Era uma maneira de me aquecer.
Muitas pessoas vinham descalças de Arneirós, chegavam à Capela do Espírito Santo, calçavam-se e iam fazer as suas compras na cidade. Depois, quando iam embora, tiravam outra vez o calçado e iam descalças até Arneirós.
Houve um tempo que surgiu a Lei do Pé Descalço, era proibido andar descalço na cidade. De maneira que as pessoas faziam o que podiam para estimar o calçado que tinham. As pessoas até eram autuadas se andassem descalças. Não é como agora que dizem que os bebés até já nascem calçados! Felizmente, a vida melhorou muito.
Começou a trabalhar muito jovem. Como foi a sua vida a partir daí?
Aos 15 anos já era modelador de calçado. E a minha namorada, hoje minha mulher, era costureira. Passei por várias crises. O trabalho não era garantido. Mas a principal indústria era a sapataria.
Depois, vim viver para Lamego no tempo da 2ª Guerra Mundial. A minha função no trabalho era marcar a sola, o número da bota, o número do artista que a fez. Sabe para onde ia esse calçado? Para os homens que andavam na Alemanha, na Guerra. Iam em caixotes de 50 pares e eram vendidos para os espanhóis.
Sabe menina, sou do tempo em que só havia sete automóveis em Lamego, a contar com os carros de Praça!
Será que a cidade evoluiu desde essa época?
Muito mesmo. Praticamente só havia o Castelo, a rua Macário de Castro, a rua da Olaria e pouco mais. A cidade expandiu-se, tornou-se muito maior. Recebemos turistas e tudo.
E quanto à Revolução, como recebeu a notícia?
Eu já andava a ouvir rumores que ia haver uma revolução. Mas estava com receio.
Cumpri serviço militar em 1952, cerca de dois anos, mas não cheguei a ir para o ultramar.
Que significado tem para si a revolução de 25 de abril de 74?
Acima de tudo, Liberdade.
Sempre fui livre, mas também sempre trabalhei muito. Sempre fui humilde. Mas a revolução trouxe mais oportunidades. As ruas de Lamego pareciam outras depois do 25 de abril.
Aos 93 anos, continua a exercer o seu direito ao voto?
Sempre. Até hoje nunca falhei uma única vez. Até a saúde me permitir irei votar. Ainda há dias fui votar!
Rogério Henriques Barradas, homem humilde, falador e extremamente prestável. Estava capaz de ficar a ouvi-lo por horas. Confesso que me faltam as palavras para descrever este testemunho. Ao ler o seu testemunho percebemos a sua vontade de partilhar histórias, a sua simpatia em colaborar. Fez questão de me convidar para voltar a falar-lhe sempre que quiser, que estará sempre disponível.
Faltam-me as palavras para descrever o que senti enquanto me contava a história de uma cidade que estava longe da minha imaginação: a falta de comida, a falta de bens essenciais, uma cidade despida.
Comoveu-me a forma como me ia contanto tudo isto, sem precisar de fazer grandes perguntas.
Comoveu-me a lucidez que ainda traz consigo e a forma como descreve cada momento, cada episódio. A forma como falou do seu percurso de vida.
Até hoje, continua a trabalhar. A estar disponível. Vive feliz, com a sua esposa. Rodeados de filhos, netos e bisnetos. Que privilégio ouvir toda esta história. Que privilégio, privar com um homem tão altruísta.
#5
“Quero saber mais sobre a minha cidade.”
Ana Catarina Almeida Pinto Lobão, nasci a 30 de setembro de 1991 em Lamego.
Não, não vivi a Revolução. Até aos dias de hoje não conheço o significado da palavra opressão, ditadura, pobreza. Porque acredito que só quem experiencia qualquer tipo de privação tem o poder e a legitimidade de falar sobre isso. Por este motivo quis falar com estas pessoas.
Por tudo isto e, sobretudo, por ser apaixonada pela minha cidade.
Sempre gostei de ouvir os outros, saber mais sobre as suas vivências. Imaginar as suas histórias.
Tratando-se de uma data tão significativa, não podia deixar passar. Pensei em várias pessoas que poderiam dar-me o seu testemunho.
Quero saber mais sobre a minha cidade.
Quero saber mais sobre as histórias que as pessoas carregam consigo.
Queria, acima de tudo, ouvir de quem sabe o que foi viver uma Revolução, um momento histórico que marcou a história do nosso país.
Continuarei a fazer este trabalho. De tentar saber mais sobre o que esconde cada porta, em cada rua da cidade. Vou querer saber mais sobre a vida que os mais velhos levaram. Acredito que Lamego ainda tem muito para contar, em cada esquina não há só um amigo, há também memórias.
Para aqui chegar, li e ouvi vários testemunhos de outras pessoas. E só assim percebi a verdadeira importância desta data.
Abril cumpriu-se em 1974. Abril cumpre-se diariamente. Porque, se assim não fosse, eu não estaria a partilhar todas estas memórias. Enquanto mulher, talvez nem me fosse permitido trabalhar.
Abril foi uma conquista, mas continua a dar-nos luta. Ainda há um caminho longo a percorrer.
A D. Judite e o Sr. Rogério ensinaram-me que o direito ao voto é um enorme poder que temos, mesmo sem nos apercebermos da sua dimensão.
Com o testemunho de Afonso Lobão, e depois de saber do seu percurso de vida enquanto político, percebi que esta pode e deve ser uma via e uma ferramenta de aprendizagem para sabermos mais sobre a sociedade, do país e do mundo, e contribuir para o seu desenvolvimento. Estar atenta às notícias, sobretudo do nosso país, é fundamental para nos formamos enquanto seres humanos para um futuro melhor. Para um país melhor.
Quanto ao testemunho de José Mendonça, fica o compromisso de voltar à sua história e ouvir o que ficou por dizer, se assim o permitir.
Pela primeira vez, conheci alguém que esteve fora do país, ainda que a servi-lo na Força Aérea, enquanto se dava a Revolução em Lisboa. Um testemunho completamente diferente e que, como referi, a ele regressarei.
Tentei transcrever ao máximo cada testemunho. Mas com a consciência de que estas páginas serão sempre redutoras.
Resta-me agradecer a todos eles.
Pela disponibilidade e pela vontade de partilhar a sua história. E, por isso, sinto-me muito grata.
Estas partilhas não se tratam apenas da vivência do 25 de abril de 1974, mas do íntimo de cada um deles. Do que viveram, do que sentiram, do que viram.
“E livres habitamos no tempo.” – Sophia de Mello Breyner
Ana Catarina Pinto Lobão, in Voz de Lamego, ano 94/23, n.º 4751, de 24 de abril de 2024.