“Poderá um cego guiar outro cego? Não cairão os dois nalguma cova? O discípulo não é superior ao mestre, mas todo o discípulo perfeito deverá ser como o seu mestre. Porque vês o argueiro que o teu irmão tem na vista e não reparas na trave que está na tua? Como podes dizer a teu irmão: ‘Irmão, deixa-me tirar o argueiro que tens na vista’, se tu não vês a trave que está na tua? Hipócrita, tira primeiro a trave da tua vista e então verás bem para tirar o argueiro da vista do teu irmão” (Lc 6, 39-42).
Mais ou menos cúmplices do Evangelho, todos reconhecemos estas palavras, nomeadamente quando procuramos refletir sobre os juízos de valor que fazemos dos outros. Na verdade, é mais fácil olhar para fora de nós e, portanto, para os outros do que para nós mesmos, ainda que haja quem seja carrasco de si mesmo.
No espelho procurámo-nos! Não somos bons juízes, ou procuramos somente os defeitos e imperfeições ou procuramos apenas o melhor ângulo. Somos uma miscelânea de sentimentos e emoções, de inseguranças e medos, confiança e autoestima. É bom termos a consciência do que somos, sem nos auto idolatrarmos nem nos sabotarmos.
Porém, desembaraçamo-nos melhor a ver os defeitos alheios, as suas insuficiências, os seus pecados. E porque não é connosco, sempre poderemos comentar, reprovar, condenar. Enquanto apontamos para os outros, desviamos a atenção de nós. Como não recordar a criança qua acusa o irmão ou o colega antes que alguém perceba a sua “marotice”? Em adultos, por vezes, continuamos a usar a mesma infantilidade de virarmos os holofotes para os outros quando têm algum percalço.
Saliente-se também que os defeitos que desprezamos ou anotamos nos outros por vezes são os defeitos que desprezamos em nós. Veja-se o caso de familiares que conflituam com facilidade: os próprios concluem, se forem instados a refletir, que são muito parecidos. Vemos os nossos “defeitos” nos outros e irritamo-nos com os outros, mas na verdade a irritação é contra aquilo que não queremos ver em nós. O que o outro diz de ti, poderá estar a dizê-lo de si mesmo.
«O que tu és fala tão alto que mal consigo ouvir o que tu dizes». As palavras de Ralph Waldo Emerson sublinham a nossa identidade além das palavras que dizemos, mas o que dizemos também nos diz. E o que dizemos dos outros, quantos vezes, diz mais de nós do que deles. Um pouco como sublinha o célebre psiquiatra brasileiro, Augusto Cury, “por detrás de uma pessoa que fere há sempre uma pessoa ferida. Ninguém agride os outros sem primeiro se auto-agredir. Ninguém faz os outros infelizes, se primeiro não for infeliz”.
Carl Jung, por sua vez, conclui que “tudo o que nos irrita nos outros pode levar-nos a uma melhor compreensão de nós mesmos”.
Jesus desafia-nos a olharmos em primeiro lugar para nós, para a nossa vida, para a nossa conduta, preocupando-nos sobretudo em orientar as nossas escolhas pelo bem e pela verdade, ao invés de estarmos à cata dos erros dos outros. O nosso juízo de valor sobre os outros deve ser muito cuidadoso, usando para com eles a medida que gostaríamos que usassem connosco. Ou como nos lembra um ditado popular, não atiremos pedras aos telhados vizinhos quando nós temos telhados de vidro, é um perigo, poderemos ficar sem telhado…
Sabe-nos bem quando dizemos mal de alguém? Sentimos deleite quando ouvimos zombar dos outros? E quando somos ouvintes do que dizem de nós?
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 94/44, n.º 4772, de 2 de outubro de 2024.