Não é a primeira e não será a última vez, querendo Deus, que escrevo sobre Judas. Depois de uma ou outra leitura, como Augusto Cury, psiquiatra brasileiro, ou Ariel Álvarez Valdés, teólogo argentino, é possível ver que há muito mais vida em Judas do que a condenação imediata. Feitas as contas, o primeiro a condenar-se, pela insensatez, pela precipitação, pela injustiça, foi o próprio Judas, que, não se perdoando, se enforcaria.
A postura dos diferentes apóstolos não foi muito diferente, pois todos abandonaram Jesus, até mesmo Pedro, que verbalizou o medo, a fuga, a negação, a traição ao seu melhor amigo. Com efeito, só o discípulo amado, segundo o Evangelho de são João, se manteve próximo. A grande diferença entre Pedro e Judas não é a dimensão da traição. Sendo dos discípulos mais próximos de Jesus, Judas não percebe o perdão do Mestre e funda-se na culpabilidade, enquanto Pedro se deixa trespassar pela Sua misericórdia.
O drama de Judas não foi a falta de fé, mas o zelo, a fé radicalizada, um fundamentalismo que trai Deus e O tira da equação. É preciso que o reino de Deus chegue, rapidamente, a bem ou a mal. Ou os ouvintes escutam as palavras de Jesus, se convertem e se tornam militantes de uma causa revolucionária ou, então, como tinham sugerido Tiago e João, é necessário mandar fogo do Céu e tornar tudo mais evidente.
Ignacio Larrañaga, na obra “O Pobre de Nazaré” alinha por este desiderato: Judas não trai Jesus por dinheiro ou por ânsia de poder (num sentido mais pessoal), mas por zelo, querendo que Jesus Se resolva e apresse o Reino de Deus, eliminando rapidamente todos os corruptores, derrubando as autoridades estrangeiras e restabelecendo a realeza judaica. Judas acredita em Jesus e sabe que Ele vem de Deus e pode fazer mais do que aquilo que estará disposto a mostrar. Quando Jesus anuncia aos Seus discípulos que vai ser morto – contrário do que seria expectável por todos – Judas coloca-se em ação para O obrigar a agir. Judas é um dos discípulos mais próximos de Jesus. A cumplicidade de Judas com Jesus não espanta nenhum dos outros apóstolos, é natural, são bons amigos. O facto de Judas se enforcar denota o seu arrependimento, isto é, se ele fosse traidor (por dinheiro ou para usurpar o poder da liderança), então dar-se-ia por satisfeito. Segundo o autor, Judas é maníaco depressivo. Mais que traição, Judas usa uma tática para obrigar Jesus a ser Deus. Porém, Jesus assume o caminho da pobreza, é o Pobre de Nazaré, aprende a obediência, até à morte e morte de Cruz. Serviço, delicadeza, oferecimento da própria vida, despojamento. Ele não veio para impor a Sua vontade, para Se impor, mas para viver como nós e mostrar que é possível, pela via do amor, do perdão e do serviço, construir fraternidade, um mundo mais são, mais solidário.
A Quaresma faz-nos olhar com atenção para a Paixão de Jesus, o mistério da Sua vida entregue pela humanidade, na radicalidade do oferecimento por amor, por amor a Deus e aos homens. Faz-nos também acompanhar a vocação e o seguimento dos discípulos. Como tantas vezes se tem sublinhado, não importa tanto o ponto de partida, mas a disponibilidade para seguir Jesus e se deixar transformar pelo Seu Espírito de Amor. A vida não é linear e existem avanços e recuos. O drama de Judas foi enrodilhar-se no excesso de zelo, querendo que Deus fizesse a sua vontade, não assumindo a disponibilidade para se tornar instrumento da graça de Deus para os outros.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 94/16, n.º 4744, de 28 de fevereiro de 2024.