Pelo menos no anúncio do Evangelho. O mesmo vale para a vivência da fé. A minha fé, em absoluto, independente, não existe, é pura ficção. Como facilmente o lemos, alguém que afirma “eu cá tenho a minha fé” está a procurar justificar-se pela ausência ou pela indiferença em relação aos que proclamam a mesma fé. Estamos a falar de fé cristã. Claro. Não de uma qualquer fé ou de uma confiança em algo de sobrenatural, mas a fé em Jesus Cristo, filho de Deus, que, no tempo, encarnou em Maria. Jesus apresenta-nos Deus como Pai, Seu e nosso. Já intuído no Antigo Testamento, é, porém, Jesus que claramente fala em Deus como Pai. Ele é o Filho. É uma realidade ontológica. Assume-nos como irmãos. Teologicamente, somos Seus irmãos e, por conseguinte, filhos amados de Deus. Filhos no Filho. Irmãos.
Entramos no mês de Maria e ressoam em nós, como há dois mil anos, as últimas palavras de Jesus, no alto da Cruz, ao discípulo predileto que nos cabe ser: “Eis a tua Mãe… Eis o teu filho”. Somos filhos duas vezes! Meu e vosso Pai. Garantia de Jesus. A oração, que nos ensina, assume a mesma realidade, Pai-nosso. Não é meu! Não é teu. Ou, se é meu e teu Pai, então é Pai dos dois, é nosso Pai. A relação consequente é a de irmãos. Na Cruz, Jesus acentua a fraternidade. Maria é Sua Mãe, ontologicamente falando, mas é também nossa mãe, espiritualmente falando, porque assim Ele o quis, assim o quer! Sempre que nos afastamos entre nós, estamos a afastar-nos de Jesus, estamos a afastar-nos do Pai, desagradando-lhe. Não são palavras, é a nossa identidade cristã, batismal, é o nosso compromisso cristão.
A fé tem, claramente, uma dimensão pessoal. Acolhemos Deus, interpretamos o Seu amor, a Sua palavra com o que somos, no contexto em que vivemos, com os dramas que atravessamos, com a educação que recebemos e com a cultura onde estamos imersos. Portanto, a fé também é minha! É a minha fé. Não é a tua. Não é de mais ninguém. É a minha fé. O meu jeito de acolher Deus, de amar a Deus, de me identificar com Ele, de O seguir, de O comunicar, de me deixar tocar pela Sua graça. Mas se ficar pela “minha fé”, fico a meio do caminho! Ficar a meio do caminho é tão pobre como ficar no início ou nem sequer começar. Nem quente nem frio, morno. Assim, assim. Sem chama! Sem fogo. Inodoro. Insosso. Sem cheiro nem sabor. O risco de contar apenas com a “minha fé” é que deixe de ser fé para ser um qualquer sentimentalismo, uma impressão, algo de vago, perdido nas nuvens, que me eleva, desligando-me do mundo, desligando-me dos outros. Quando der conta estou a adorar-me a mim, qual Sísifo!
Eu Sou a videira, vós os ramos. Se os ramos estão desligados, se são cortados, deixam de ter seiva, secam e serão usados, por exemplo, para acender a lareira. Se estamos ligados a Ele, estamos ligados entre nós. Imaginas que um ramo possa estar ligado à vide sem estar conectado com os outros ramos? A seiva que alimenta uns, alimenta outros.
Se nos sentamos à mesa, em casa do Pai (da Mãe), não o fazemos de costas voltadas, nem para Ele nem para os outros. Não há um lugar. Em casa de Meu Pai há muitas moradas. Há muitos lugares. Há lugar para todos. Para todos. Todos têm lugar à mesa, todos têm o seu lugar em casa do Pai. Ninguém está a mais. Nem tu, nem eu. E se falta alguém, o lugar deixado vago ou ainda não ocupado, não é um lugar vazio, é um lugar à espera. À espera de quem há de chegar ou voltar. À espera do tempo certo, ou à tua espera, à minha espera, para que vamos e ele se sinta (novamente) atraído a regressar aos braços do Pai, de um Pai que é mais Mãe.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 94/24, n.º 4752, de 1 de maio 2024.