“Eucaristia não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio e um alimento para os frágeis”. É uma expressão que o santo Padre tem popularizado, para sublinhar, por um lado, que somos todos pecadores e, por outro, que a Eucaristia é o remédio que nos descentra de nós, das nossas fragilidades, e nos coloca diante de Deus que nos ama e nos ama tanto que quer alimentar-nos com a luz do Seu amor. No início da Eucaristia, com efeito, reconhecemo-nos pecadores e invocamos a misericórdia de Deus. Onde abunda o pecado, no dizer de são Paulo, superabunda a misericórdia de Deus. Este reconhecimento humilde tem dois movimentos, faz-nos iguais, estamos no mesmo pé, necessitados do olhar misericordioso de Deus, somos irmãos, e faz-nos criar espaço para que Deus venha a nós, ao nosso coração, à nossa vida.
Se nem todos nos reconhecemos pecadores, então será difícil celebrar o mesmo sacrifício, a mesma oferenda de Jesus. Ele dá a vida para nos salvar, redime-nos, santifica-nos, envolve-nos na ternura do Pai, desperta-nos para acolhermos Deus uns nos outros, reconhecendo-nos irmãos, para também nos reconhecermos como tal e construirmos fraternidade. Esta só é possível se nos posicionarmos como devedores da graça do Senhor.
Sede perfeitos/santos/misericordiosos como o Vosso Pai é perfeito/santo/misericordioso! A interpelação de Jesus será possível no momento em que nos sabemos imperfeitos, a caminho, em construção. Só assim criaremos espaço para que Deus possa habitar em nós. Se estamos cheios de nós, perfeitos, acabados, já não nos resta caminho a fazer, já não precisamos de Deus.
Em Lisboa, o Papa Francisco envolveu-nos com o seu olhar e com as suas palavras. Há expressões que foram repetidas até à exaustão, mas muitas outras provocações foram deixadas pelo Papa. Na cerimónia de acolhimento, no Parque Eduardo VII, Colina do Encontro, acentuou-se a expressão “todos, todos, todos”. Na Igreja há espaço para todos. O ponto de partida é o chamamento. Deus chamou-nos à JMJ, chama-nos pelo nome. Chama-nos como somos, não com o que poderíamos ser. Chama-nos com a nossa história, sofrimentos e fragilidade. Para Ele, não somos um número, não nos chama por um algoritmo enquanto somos úteis, não, não, Ele chama-nos pelo nome, porque nos ama e não nos descarta por motivo nenhum.
Revisitemos o discurso papal: “[Deus] chamou-nos a todos desde o início da vida. Chamou-vos pelos vossos nomes. Ele chamou-nos pelo próprio nome… Jesus chamou-me pelo meu nome. São palavras escritas no coração; pensemos, pois, que estão escritas dentro de cada um de nós, nos nossos corações, e formam uma espécie de título para a tua vida, o sentido do que és, o sentido daquilo que cada um é. Nenhum de nós é cristão por acaso, todos fomos chamados pelo nosso nome. Ao princípio da teia da vida, ainda antes dos talentos que possuímos, antes das sombras, das feridas que trazemos dentro de nós, recebemos um chamamento. Fomos chamados, porquê? Porque amados. Fomos chamados, porque somos amados. É belo! Aos olhos de Deus somos filhos preciosos, que Ele cada dia chama para abraçar, para encorajar; para fazer de cada um de nós uma obra-prima única, original”.
Assim, na Igreja há lugar para todos. “E é por isso que nós, sua Igreja, somos a comunidade dos que são chamados; não somos a comunidade dos melhores, não! Somos todos pecadores, mas somos chamados assim como somos… somos chamados como somos, com os problemas que temos, com as limitações que temos, com a nossa alegria transbordante, com a nossa vontade de sermos melhores, com a nossa vontade de vencer. Somos chamados como somos. Pensai nisto: Jesus chama-me como eu sou, não como eu gostaria de ser. Somos comunidade de irmãos e irmãs de Jesus, filhos e filhas do mesmo Pai”.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 94/03, n.º 4731, de 22 de novembro de 2023.