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Editorial: Não conheço tal homem

Estamos em plena Semana Santa, a maior da nossa fé.

Como em tantas outras situações da vida, o tempo de cada um é muito pessoal, relativo e incomensurável. Há horas que parecem dias; há dias que são tão breves que nem se dá conta de o tempo passar.

Para muitos, a Semana Santa é igual às outras 52 semanas do ano!

Para muitos, a Semana é a Maior porque a vivem intensamente e se deixam envolver por cada pedaço da vida de Jesus, num todo em que inteiramente, sem reversas nem condições, Ele Se entrega por nós ao Pai.

Para muitos, esta semana é mais uma oportunidade de passear, passar férias, visitar outras cidades, assistir a encenações, procissões, via-sacra, cuja tradição ou o misticismo, a beleza dos trajes, a musicalidade (sons e silêncios, matracas, rufos e outros que mais) e o marketing turístico-religioso atraem multidões!

Para muitos, é tempo de viver, recolhendo-se, refletindo, rezando, participando com fé, quase experimentando os sofrimentos de Jesus e com Ele caminhando para o Calvário, para, depois, se deixarem encontrar por Ele, Ressuscitado.

Se estivermos a assistir aos acontecimentos, podemos emocionar-nos, entusiasmar-nos, apreciar, aplaudir, passar uns minutos agradáveis, diferentes! Assim acontece numa via-sacra, como num jogo de futebol, numa peça de teatro como num filme de suspense!

O desafio é a meter-nos dentro da história, imersos na vida de Jesus, com particular vivacidade nas horas finais da Sua vida terrena. “Assistir” é pouco! Não somos meros espetadores, somos discípulos de Jesus, estamos dentro do Seu círculo de amigos. Ele fala connosco, as Suas palavras são para nós. Não são para o vizinho. Cada gesto que realiza, cada cura, cada milagre, cada libertação também nos atinge, porque nos motiva e nos move, para que também nós sejamos ouvintes, curadores das feridas dos outros, deixando que o Seu amor limpe as nossas chagas e cauterize as nossas feridas. Há ocasiões em que nos deixamos assolar pela dúvida, pela hesitação, em momentos particularmente dolorosos, pelo que vemos no mundo, pelas injustiças, a guerra, a fome, as dificuldades de tanta gente inocente a viver na miséria. Há momentos em que preferiríamos ficar de fora, manter-nos à distância, descansados, no nosso cantinho, para que ninguém nos chateasse. Há situações em que preferimos passar despercebidos, invisíveis, cobrimos o rosto, fechamos o sorriso, disfarçamos incómodos.

Naqueles dias, os discípulos deixaram-se vencer pelo medo, pela vergonha, pela ansiedade. Mais forte que a proximidade a Jesus, mais forte que a amizade, a frustração, a incapacidade de dizer ou fazer alguma coisa entrevendo perigos para a própria vida.  Pedro, como os demais apóstolos, acabrunharam-se, fugiram, esconderam-se entre a multidão. Não conheço tal homem! Não quero ser ligado a esse homem! O seu destino não há de ser o meu. Partilhei a vida, mas a perseguição, a violência física, as injúrias, a condenação à morte, o morrer com Ele, isso não é para mim! O teu sotaque garante-nos que és um dos dele! Não, não sou, estais confundidos!

Também eu sou Pedro. Também eu sou Judas. Também eu sou apóstolo. Também eu fugi! Também eu fujo de Jesus! Não conheço tal homem!

Pedro há de dar-se conta, rapidamente, da traição. Também Judas se deu conta. Também os outros apóstolos. Também eu e tu! Cabe-nos chorar a nossa distância, a nossa indiferença, o nosso pecado, sempre que não confessamos Jesus, sempre que não O reconhecemos nos irmãos. Ele perdoa-nos. Não Lhe voltemos as costas. Fixemos o olhar em Maria e nas outras mulheres e, ainda que vislumbremos sofrimento, dor, sacrifício, acolhamos o Seu amor, a Sua ternura e compaixão, a vida nova que Ele nos dá.


Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 93/20, n.º 4700, 5 de abril de 2023

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