Lídia Jorge presenteou os portugueses com um livro que, de tão cruel, real, generoso e avassalador, nos faz refletir sobre a finitude que é a vida.
É curioso como vamos lidando com o correr do dia-a-dia, fazemos planos e planos sem nunca pensar no fim da nossa vida.
E, no entanto, a única certeza inerente à condição humana, é a morte.
Lídia Jorge fala-nos sobretudo da consciência que é, quando nos encontramos na condição de velhos, e da vida que ficou para trás, como que uma retrospetiva de tudo o que fomos em tempos.
A sua mãe, protagonista do livro, viveu o seu último ano de vida num Lar, o Hotel Paraíso – curioso por si só o nome que é dado ao local que foi sua última morada. E, mais interessante ainda, a forma como esta nos descreve a automatização da sua vida. Acordar, almoçar, dormitar, jantar, dormir.
Mas, e os que têm consciência?
A metafísica da vida pode ser avassaladora para todos, mas é sobretudo, para os que a vivem.
Se questionar a algum dos leitores como imagina o fim da sua vida, certamente não será num Lar, rodeado de pessoas que do nada, esperam tudo. Que sonham com o que não volta.
Que fingem ser felizes para ter forças para ultrapassar dia após dia. Que se contentam com as migalhas que são as visitas semanais dos seus familiares e que, ainda assim, nos presenteiam sempre com um sorriso.
Que se questionam – que é da minha liberdade? Quero dormir até mais tarde, quero sentir a chuva, quero cheirar a brisa do mar, quero sentar-me numa esplanada e apreciar a vida dos outros.
Que foi da minha vida? O que faço com o pouco que me resta?
São pessoas, que não sendo mudas, ficam sem voz.
Deixam de ser merecedoras de ter livre-arbítrio.
A dureza das palavras deste livro merece ser lida, em voz alta, para que nos possamos imaginar e refletir sobre o futuro.
Nós, jovens, que visitamos os avós semanalmente e que os vemos, rodeados de fotografias de netos, filhos, bisnetos. Fotografias que contam histórias que estão lá atrás. Bem lá atrás. Histórias que já não lhes pertencem. Memórias que, achando nós, lhes trazem conforto.
Será mesmo assim?
A realidade que a autora nos traz, é atroz.
Percebemos, no folhear das páginas, a consciência da sua mãe: Ontem eramos seis à mesa, hoje somos só cinco. Mas amanhã voltaremos a ser seis porque o quarto que ficou vazio, amanhã pertencerá a outra pessoa. O lugar à mesa será o mesmo, a pessoa não.
Aqui a vida e a morte andam de mãos dadas e assim se assiste a este enlace, como que um filme. Sem nunca se saber quem será o próximo protagonista.
Se algum dia me perguntarem como imagino a morte, espero poder responder como Lídia Jorge, tão incrivelmente o fez “O além é um livro que não tem fim, cada página uma vida, cada vida uma página, quantas mais vidas, mais páginas. Isso é o além”.
Mas este livro não nos fala apenas da morte, pelo contrário, fala-nos da beleza das pequenas coisas.
É esperançoso, como que uma âncora para quem, como eu, ainda tem uma avó, na mesma condição e que, apesar de tudo, ainda mostra felicidade com o pouco que eu lhe dou.
A minha avó tem por costume dizer que já não pede nada para ela, só que os filhos e netos se encontrem bem. Deduzo que este desejo seja transversal a todos que se encontram na mesma condição.
A todos quanto vivem em casas que não as suas.
Igualmente à mãe de Lídia Jorge que, generosamente, descreve “Eu estava ao mesmo tempo maravilhosamente sozinha com a minha própria vida e maravilhosamente acompanhada com a vida das outras criaturas. E pensei para mim mesma – isto é felicidade. O pouco e o pequeno podem ser irmãos da maravilha da vida.”
Merecedor de todos os prémios portugueses que venceu, como Prémio Literário Fernando Namora, Lídia Jorge foi a primeira escritora portuguesa a ser distinguida com o Prémio Médicis Étranger.
O que retiro deste livro é, acima de tudo, uma reflexão pessoal sobre a humanização, o que damos aos outros.
Nunca um livro me assolou como o Misericórdia. Muitas vezes dei por mim a suster a respiração. E as lágrimas.
“Misterioso é o sentimento da Misericórdia.”
E termino, com palavras da própria “este livro é uma homenagem não a quem tenha partido, mas a quem, de ter partido, tenha ficado.”
Ana Catarina Lobão¸ in Voz de Lamego, ano 94/04, n.º 4732, de 29 de novembro de 2023.