O tempo em que vivemos é marcado por milhentas convulsões, consequência, por certo, de incompreensões, diferenças culturais, religiosas e políticas, e sempre resultado do egoísmo, individual e “coletivo”. Este coletivo enquadra os nacionalismos, o racismo e a xenofobia, os interesses grupais, familiares, empresariais, de uma associação a uma povoação. Quando os interesses colidem e não há espaço nem para o respeito nem para o diálogo, sobrevém a intolerância, o conflito, o propósito de eliminar o outro, de o subjugar ou de o silenciar.
O Jubileu, como o ano sabático, na cultura e religião judaicas, surgiu pela necessidade de repor a justiça, a equidade, de devolver a dignidade (liberdade) e os bens àqueles, pessoas e famílias, que tinham caído em situações de escravização ou dívida. Trata-se de equilibrar também os egoísmos individuais e tribais, colocando todos e tudo sob a alçada da misericórdia divina. A própria terra, e os animais, tem direito ao descanso e a recuperar a fertilidade.
Parafraseando o nosso Bispo, D. António Couto, no que diz respeito à Diocese de Lamego, é tempo de fazermos com que os cerca de 100 mil habitantes formem uma verdadeira família, reconhecendo-se como irmãos e cuidando dos mais frágeis. É possível que nas nossas comunidades, como nas nossas famílias, haja momentos e situações de esquecimento, conflitualidade e indiferença.
A evolução tecnológica facilitou a aproximação das pessoas, mas curiosamente, como diria Bento XVI, não nos tornou irmãos. Estamos em contacto com o mundo inteiro e, muitas vezes, ao fim do dia, não estivemos verdadeiramente com ninguém. Telefonamos, fazemos videochamadas, visualizamos muitas vidas, chegam-nos muitas informações, mas deixamos de abraçar, de ir bater à porta vizinha, perguntar se a pessoa está bem, se precisa de alguma coisa. Nas nossas aldeias essa proximidade e delicadeza ainda vão existindo. Se nos mesmos lugares e em situações similares, alguma pessoa não estiver, as demais perguntam por ela e vão ver se está em casa, saber dela, não por coscuvilhice, mas por preocupação. Mas há pessoas isoladas, sós! Até pode ter feito por isso! Mas para um seguidor de Jesus Cristo isso não serve de desculpa. O Jubileu refere-se a Jesus, ao Seu nascimento e a este mistério de salvação, Deus que Se faz um de nóms, um connosco, para nos remir, para nos reunir, para fazer de nós uma família. A opção preferencial pelos mais pobres não é apenas um chavão teológico, é a opção de Jesus. Ele vem não para os sãos e santos, mas para os pecadores e os que necessitam de cura. Ele assume-Se como nosso irmão para que n’Ele nos reconheçamos irmãos de todos. Mas não basta amar ma generalidade. O amor, como bem gosta de sublinhar o Papa Francisco, é como a fé, tem de ser concreto e palpável, com gestos de atenção, cuidado e serviço. Quem não vive para servir, não serve para viver. É necessário, como desafia o santo Padre, sair do sofá, ir ao encontro das pessoas que precisam de um sorriso, uma mão ou um ombro onde chorar e desabafar.
Há uma música que, por estes dias, vai passando nas estações de rádio e na internet, da Nena, que nos alerta: “Eu não ouvi / Estava de fones nos ouvidos, o meu avô / Contou-me histórias, deu-me livros, estão em mim / Mas não sei bem, parece que ficou metade / Hoje digo olá a conhecidos / Se parar eu acho que me lembro / Dizem que sem fones nos ouvidos / Vamos todos ainda a tempo”.
O Jubileu está aí! Queremos que seja um tempo de graça e salvação, de justiça social, marcado por gestos de reconciliação e de paz, empenhados em construir um mundo, uma sociedade, em que todos sejam, de facto, filhos do mesmo Deus, irmãos motivados e mobilizados a lidar com as diferenças e a descobrir que o outro, afinal, é presença de Deus. O que fizerdes ao mais pequeno dos meus irmãos a Mim o fazeis! Talvez seja tempo de tirar os fones dos ouvidos e escutar aqueles que Deus nos enviar para amar, cuidar e servir.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 95/8, n.º 4785, de 8 de janeiro de 2025