José e os seus irmãos, da autoria de Thomas Mann, é uma tetralogia que foi publicada nas décadas de 30 e 40 do século passado, tendo sido reeditada recentemente pela Dom Quixote.
O autor inspirou-se na célebre história bíblica de José, o jovem que foi vendido como escravo pelos irmãos, pois estes odiavam-no por ele ser o preferido do pai. Os mercadores que o compraram dirigiam-se para o Egito e foi aí que venderam José a Putifar, chefe da guarda do Faraó.
Mercê de circunstâncias várias e devido à sua sabedoria e ao dom de interpretação de sonhos, José mereceu a confiança do Faraó, que lhe concedeu plenos poderes, colocando-o à frente de todo o país. Passados alguns anos, José encontra-se com os seus irmãos e perdoa-lhes.
A história de José merece ser recordada por vários motivos. Um deles é o famoso sonho do Faraó, no qual apareciam, entre outros elementos, sete vacas gordas que eram devoradas por sete vacas magras. Como é sabido, ainda hoje usamos estas expressões para nos referirmos a tempos de abundância e de penúria, respetivamente, de acordo com a interpretação que José fez deste sonho.
Outro dos motivos é a integridade de José, que o levou a não ceder às repetidas tentativas de sedução de que foi alvo por parte da mulher de Putifar. Mais importante ainda é a perspetiva que esta fascinante história nos dá acerca das relações dos seres humanos uns com os outros e com Deus e a maneira como nos mostra que a inveja e a vingança são claramente suplantadas pelo amor, pelo perdão e pela confiança ilimitada em Deus.
Mantendo inalterados os acontecimentos fulcrais desta narrativa, Thomas Mann amplia-a, reinterpretando situações (às vezes, de forma divertida), criando outras e analisando com minúcia os valores que orientam as personagens, o modo como se relacionam, as qualidades de que dão provas e também os defeitos, os sentimentos, os projetos e os pensamentos.
Entre os muitos exemplos do talento do autor, podemos apontar o episódio da paixão da mulher de Putifar por José, que, na Bíblia, é contado em pouco menos de trezentas palavras e, na obra de Mann, ocupa mais de trezentas páginas. O narrador relata as várias fases desse sentimento (que se prolongou por três anos); mostra as reações de José quando percebeu o que se passava; cria diálogos, de uma riqueza argumentativa ímpar, entre as duas personagens, mostrando como cada uma delas tenta fazer com que a outra mude de ideias; dá-nos a conhecer os pensamentos e motivações dos dois; introduz outros intervenientes.
Thomas Mann procedeu ainda a uma profunda investigação sobre o contexto histórico, o que lhe permite referir-se pormenorizadamente às crenças religiosas, às festas, às relações entre povos, aos modelos económicos. Todas estas informações são transmitidas através de uma linguagem precisa, clara, rica, profunda, quando o assunto assim o exige, mas nunca pretensiosa.
Pelas lições que dá e pelo carácter lúdico que tem, este livro é um dos que nos levam a contactar com diferentes conceções do mundo e da vida, a mergulhar em ambientes diversos e a emergir com mais sabedoria, a afastarmo-nos do nosso mundo e a regressar a ele mais preparados para viver.
É uma obra a ter sempre por perto, até porque os momentos de prazer que nos proporciona não se esgotam na primeira leitura.
Margarida Dias, in Voz de Lamego, Ano 93/36, n.º 4716, de 26 de julho de 2023