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Individualismo, identidade e rivalidade

Neste dia 24 de abril, em 2005, o recém-eleito Papa Bento XVI iniciava oficialmente o pontificado. Nos dias precedentes, antes do conclave encerrar portas, o ainda Cardeal Joseph Ratzinger alertava para os perigos do relativismo. Uma homilia, segundo alguns, que tornou mais possível a sua escolha para sucessor de João Paulo II.

Dizia então: “Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que deixa como última medida só o próprio eu e o seu desejo”. Neste sentido, “ter uma fé clara, baseada no credo da Igreja, é fundamental, em vez de se deixar andar ao sabor de cada ventania, ou cada sopro”.

Quando vale tudo, nas ideias e nas opções de vida, nada tem valor ou tem um valor a prazo, titubeante, utilitário. Vale porque dá jeito. Escolheu-se este caminho, não por convicção, mas porque estava mais à mão, parecia mais fácil de percorrer, evitava chatices… No seu pontificado, Bento XVI sublinharia, muitas vezes, que o diálogo e a tolerância são possíveis quando há convicções, quando se tem consciência da identidade que se vive, da história que se herdou e do caminho que se quer seguir. Quando não há convicções, firmeza nas ideias, qualquer discussão redunda em passatempo, pois não é possível o contraditório e o enriquecimento de pontos de vista. Ter que debater uma ideia com alguém que pensa diferente, exige que saibamos defender essa ideia, caracterizando-a, sabendo o que significa, as suas limitações e incongruências, as suas potencialidades. O outro far-nos-á ver melhor as nossas opções e nós contribuiremos para que o outro veja com mais clareza as suas escolhas.

A ignorância e a arrogância costumam andar de mãos dadas. Quando não sabes o que queres nem para onde vais, não há argumentos, apenas discussão de palavras, sem fundo nem conteúdo. A sabedoria ajuda a perceber-se e a perceber os outros, mesmo que difiram de nós. É um pouco como o novo (1990) acordo ortográfico! Quem sabe escrever bem e conhece as regras gramaticais e (eventualmente) a etimologia das palavras, a origem dos vocábulos, sabe as alterações propostas e assumidas, está preparado para escrever segundo este acordo e esta grafia. Quem antes não sabia escrever, continuará a escrever mal até ao dia em que os dicionários assumirem todas as palavras e todas valham da mesma forma, escrevas bem ou “escrebas” mal, vai dar ao mesmo! És o teu próprio corretor.

Nas jornadas de formação do clero de Lamego, nos dias 6 e 7 de fevereiro, esteve entre nós o Pe. Ignacio Gonzales Llopes. Numa das suas intervenções fez uma distinção entre individualismo e egoísmo, ou melhor, contrapôs ao individualismo a rivalidade. Segundo o sacerdote espanhol, o individualismo tem a ver com a individualidade, a pessoa afirma-se com os seus caracteres específicos. Dito desta forma, mais que falar de individualismo, poderíamos falar em identidade. A consciência da própria identidade para criar e dar espaço à identidade do outro. A dinâmica é semelhante à do relativismo. Se tudo é igual ao litro, eu decido o que conta, sem confrontar a autenticidade ou a verdade, sem dar espaço à argumentação do outro ou à sua identidade, pois se todas as ideias, propostas, caminhos são iguais, porque é que não hei de impor o meu ideário?

Recuperemos as palavras do Pe. Ignacio: o que se opõe à fraternidade não é o individualismo mas a rivalidade. Individualismo: a pessoa é o que é. A rivalidade na família, na comunidade, entre os sacerdotes, na Igreja é que mina e destrói a fraternidade. O Menino que nasce já tem adversário. Herodes manda matar as crianças até dois anos, para evitar que o referido Menino possa vir a disputar o seu lugar e o seu poder.


Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 94/23, n.º 4751, de 24 de abril de 2024

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