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Sugestão de leitura: Humano, mais humano

O título deste livro já ambientou um dos editoriais da Voz de Lamego (edição de 10 de agosto), agora recomendámo-lo, entrando um pouco mais no conteúdo do mesmo.

Josep Maria Esquirol coloca-se em diálogo com Nietzsche, do qual se conhece sobejamente a expressão (e o projeto) do super-homem, em que se pretende ir além do humano, “humano, demasiado humano”. A esta expressão e propósito, Esquirol propõe a filosofia da proximidade, “humano, mais humano”, na procura, não de ir além da humanidade, mas ir ao mais profundo. O autor propõe uma filosofia sem luxos e intrinsecamente pobre, “ao serviço da ação e da orientação da vida. Que a reflexão sobre a vida deve intensificá-la. E que a reflexão sobre o mal deve ajudar a combatê-lo. Que uma boa teoria deve ser, em si mesma, gesto e ação”.

O mais importante não é o que se encontra mais longe, mas o mais profundo. “Uma civilização mais humana leva-nos a fazer do mundo um lar e não a abandonar o lar para dominar o mundo; que uma cultura mais humana não é uma cultura timorata nem niilista, mas aquela que sabe que não existe força intensa do que a que se conjuga com o sentido. Na debilidade, no humano, na vulnerabilidade…, neste demasiado que, na verdade, é um mais, lateja a pulsação da verdade”.

A marca do cristianismo, influenciando a cultura, a filosofia e outros saberes, é a mansidão. “É este o evangelho cristão: Deus não é revelado pelo poder, pela força ou realeza, mas pela humanidade de Jesus Cristo; através da humildade, vulnerabilidade e amor compassivo de Jesus Cristo. Pela doçura e não pela força. A kenosis, a Encarnação como rebaixamento; a baixeza e a humildade tornadas divinas. O mais divino revelado no mais humano. Enquanto a doçura grega é basicamente amabilidade, a doçura cristã identifica-se com a mansidão e humildade”.

Vale a pena disponibilizar uma das citações feitas pelo autor e incluída no livro. “O manso é […] aquele que ‘deixa o outro ser aquilo que é’, mesmo que o outro seja pretensioso, caluniador, prepotente. Não entra em relação com os outros no intuito de competir, de provocar conflitos e, por fim, de vencer. É completamente alheio ao espírito de competição, de concorrência, de rivalidade e, portanto, também de vitória. Com efeito, na luta pela vida, é o eterno derrotado. A imagem que ele tem do mundo e da história, do único mundo e da única história em que gostaria de viver, é a de um mundo e de uma história em que não há vencedores nem vencidos, e não há vencedores nem vencidos, porque não há competições pelo primado, nem lutas pelo poder, nem corridas à riqueza, faltando, em suma, as próprias condições que permitem dividir os homens em vencedores e vencidos” (Norberto Bobbio).

No decorrer da sua exposição, o autor apresenta dois elementos fundamentais que permitem viver e dão sentido à vida, o pão (o concreto, o quotidiano) e o canto. Com efeito, “cantamos para celebrar, e cantamos também para não ter medo. Para celebrar as coisas da vida, e para não ter tanto medo da morte… Canto que cura e canto que exalta a beleza do mundo”.

Outra das temáticas em evidência é a separação entre o espiritual e o material, entre a história e a eternidade, entre a terra e o céu. Esquirol contrapõe, dizendo que “o que é angustiante e esquizofrénico é a terra sem relação com o céu, ou o céu sem relação com a terra. O horizonte, que tanto nos apazigua, é relacional. A relação salva-nos. O horror radica nos elementos totalizados: o vazio do céu, a densa escuridão da terra… A relação é já algo concreto, e as coisas são coisas no concreto da relação”. Nesta mesma perspetiva sublinha que uma pessoa espiritual é “alguém que se levanta de manhã, faz o seu trabalho, cuida da sua gente, se distrai… Para além disso, à pessoa espiritual não a irrita o senso comum, nem denuncia como inautêntica a vida alheia, que é como a sua. Vive a normalidade, mas habita já a excecionalidade”.

Esquirol estabelece, inequivocamente, a ponte entre a fé e a vida, a espiritualidade e a materialidade, a terra e o céu. “De facto, o quotidiano é já uma resposta à situação; já faz parte da gravidade da vida. O voo nasce da horizontalidade da terra. Por vezes, voar significa subir bem alto e quase tocar o céu azul, mas sem nunca perder de vista a beleza da terra plana”. É a gravidade da terra que permite voar!

A tensão para o futuro enraíza-se no presente. Vive-se o presente com abertura para os dias que vêm pela frente. “Cada respiração de hoje é já anseio pelo amanhã. Aquele tópico segundo o qual devemos viver concentrados no presente é bom desde que não se acrescente exclusivamente. Se o fizermos, transforma-se em polarização desajeitada. Claro que devemos viver o presente! Devíamos até treinar para consegui-lo! Mas isso não impede que o trago do presente espere e aspire já ao trago do amanhã. Viver é gosto — ou pena — do hoje e espera pelo amanhã. E a espera é criação, curvatura poiética. Geramos espera e esperança por duas razões essenciais: porque todo o (bom) encontro exige reencontro, e porque nem tudo está bem”.

JOSEP MARIA ESQUIROL

Nasceu em 1963. É professor de Filosofia na Universidade de Barcelona, onde também dirige «Aporia», um grupo de investigação sobre filosofia, ética e política contemporâneas, temas aos quais tem dedicado várias publicações. Entre elas, “A resistência íntima – Ensaio sobre uma filosofia de proximidade”, vencedor em Espanha do prestigiado Prémio Nacional de Não-Ficção. Foi publicado em Portugal por Edições 70.

Esquirol continua a desenvolver a sua própria «filosofia da proximidade», uma visão profunda e poética (e radicalmente criativa) da condição humana.

Autor: Josep Maria Esquirol

Título: Humana, mais humano

Subtítulo: Uma antropologia da ferida infinita

Editora: Paulinas Editora

Ano: 2022

Páginas: 160

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