HomeCrónicasEstatuto de vítima da criança
CrónicasDestaquesLegislaçãoPessoas

Estatuto de vítima da criança

Uma vez que a violência doméstica, foi a problemática mais sinalizada à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Lamego no ano de 2023, é importante fazer uma reflexão sobre o tema.

Nunca é demais salientar que, apesar de atualmente esta problemática ser bastante falada, ela não surgiu agora. Contudo, desde sempre foi identificada como a violência velada (obscura, encoberta, palavra que vem do Latim “velare”, que significava “cobrir com um véu”), praticada dentro de casa, usualmente entre parentes. Também, não é demais salientar que sempre ocorreu em todas as “classes financeiras”, contudo, sempre foi menos denunciada nas classes ditas “média e alta”, por vergonha e receio das vítimas, de se exporem a si, e à sua família.

Com o aumento do número de crimes de violência doméstica, e analisados os efeitos nefastos que este crime provoca às suas vítimas, Portugal criou provisões legais específicas para a ocorrência de violência no seio da família.

Refira-se que este crime está previsto no artigo 152º do Código Penal, onde está plasmado que, incorre no crime de violência doméstica quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, à pessoa com quem mantem uma relação, ou com quem tenha mantido, seja ela relação de namoro ou análoga à dos cônjuges, ainda que não exista coabitação.

No mesmo artigo, está previsto ainda que, também incorre no mesmo crime, quem o exercer sob menor descendente, sendo neste caso, considerados também vítimas, os descendentes.

O conceito de «vitima» pela Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro, refere ser a pessoa que sofreu um dano, seja ele físico ou psíquico, emocional ou moral, ou até uma perda material, diretamente causada por uma ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal. No mesmo artigo desta Lei, inclui-se ainda, as crianças ou jovens que sofreram maus tratos em contextos de violência doméstica.

“Apresentada a denúncia da prática do crime de violência doméstica e não existindo fortes indícios de que a mesma é infundada, as autoridades judiciárias ou os órgãos de polícia criminal competentes atribuem à vítima, para todos os efeitos legais, o estatuto de vítima.” (artigo 14º – Lei 112/2009)

O estatuto de vítima previsto na Lei 112/2009, compreende os direitos e deveres da vítima, nomeadamente, o direito à informação, o direito à audição e à apresentação de provas, assistência especifica à vítima, o direito ao reembolso das despesas no âmbito da participação no processo penal, o direito à proteção, condições de prevenção de vitimização secundária, entre outros. Prevê ainda a mesma Lei que, quando existir necessidade de afastamento da vítima do agressor, a vítima tem direito a apoio para arrendamento; pode ser titular do direito ao rendimento social de inserção, assumindo este pedido carácter de urgência; bem como pode, a própria requerer a transferência do abono de família referente aos menores que se encontrem a seu cargo.

Ora, existindo menores num agregado onde se verifique um contexto de violência doméstica, a Lei nº 57/2021 de 16 de agosto, prevê que também a eles deve ser atribuído o estatuto de vítima, bem como a situação deverá ser de imediato comunicada pelas autoridades judiciárias, ou pelos órgãos de polícia criminal, à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens e ao Tribunal de Família e Menores, territorialmente competentes. Sendo o agressor constituído arguido, e analisado o grau de perigosidade da situação, o juiz poderá ponderar a aplicação de medidas de coação previstas no Código de Processo Penal, que poderão inclusive restringir o exercício de responsabilidades parentais.

Posto isto, sempre que haja notícia da existência de crianças presentes num contexto de violência doméstica, e independentemente de serem elas as destinatárias ou não, de atos de violência, aquando da receção da denúncia, deverá a informação ser remetida o mais celeremente possível à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens territorialmente competente, por forma a que seja instaurado processo de promoção e proteção em favor das crianças descendentes, estejam elas presentes ou não no momento da ocorrência.

Onde existe violência doméstica, existe sempre… não se manifesta apenas quando as crianças se encontram ausentes da residência…

É certo que, ainda que a discussão seja entre um casal, as crianças assistem… ainda que a violência, psíquica, emocional ou física, seja dirigida a outro adulto, também as crianças estão sujeitas à violência perpetrada… assistem, sofrem… são também elas vítimas diretas ou indiretas, e por isso, também elas têm de ser protegidas.

A violência doméstica, é um crime público, e por isso não está dependente de apresentação de queixa por parte da vítima, sendo apenas necessário que o crime seja denunciado, para que o Ministério Publico promova o processo, por isso, qualquer cidadão o deverá denunciar, em especial, as entidades de primeira linha, conforme o artigo 242º do Código do Processo Penal.

Note-se que, tortura, maus-tratos, violência (física, psicológica, sexual) são agressões que rompem laços de confiança, entre o agredido e o agressor, principalmente quando este último é próximo do agredido, usando o poder de poder/dever de proteção para causar diversas sequelas irreparáveis a curto, médio e longo prazo, tais como os problemas mentais, auto-culpa, hiperagressividade, pesadelos e dificuldades nas atividades escolares.

As crianças não escolhem nascer e crescer em contextos de violência, mas nós podemos escolher que condições lhes proporcionar. Por isso, cabe a nós, enquanto cidadãos, zelar para lhes garantir as melhores condições possíveis, procurando promover os seus direitos e protege-las do perigo a que possam estar sujeitas.

Tendo as entidades competentes tido conhecimento deste crime, para além do acompanhamento das crianças no âmbito de processos de promoção e proteção, pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, podem ainda usufruir gratuitamente do acompanhamento proporcionado de equipas como o Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica do Distrito de Viseu (NAVVD) e da Resposta de Apoio Psicológico (RAP), para adultos e crianças, respetivamente, proporcionando às vítimas, serviços com continuidade, com técnicos devidamente habilitados.


Milene Geada, Criminóloga e Técnica superior de serviço social,

in Voz de Lamego, ano 94/22, n.º 4750, de 17 de abril de 2024

Deixe um comentário