No Evangelho são dois grupos distintos, os discípulos e a multidão. O propósito, contudo, é que a multidão não sejam pessoas que contam mais como ajuntamento, como número, mas que se assumam na sua concretude, com rosto, com história, com convicções. Costuma dizer-se que onde todos têm as mesmas opiniões é porque ninguém pensa, melhor, alguém pensa e vão todos atrás, sem se questionar da justeza, da justiça e da verdade de tal opinião ou projeto. Podemos perder-nos no meio do grupo, da multidão. Podemos confundir-nos, perder a nossa identidade, o que nos diferencia dos outros, o que poderia ser o nosso contributo para a sociedade, contribuindo com o melhor de nós, com a nossa identidade e com os nossos dons.
A multidão, ao funcionar como um todo, pode tornar-se comunidade, que acolhe a todos, potencia o contributo de cada um, integrando, enriquecendo o todo, beneficiando todos na partilha, ou pode converter-se em juiz, em gueto, incendiando, derrubando e destruindo tudo o que vem pela frente. Existem muitos grupos assim: uma voz que se levanta e grita e vai tudo atrás. Os que vão atrás nem sempre sabem as motivações e muitos vão por ver andar a carruagem e entram no embalo da gritaria.
É curioso como Bento XVI, no livro “Jesus de Nazaré”, distingue duas multidões durante a semana santa. Na entrada triunfal em Jerusalém, uma multidão que acompanha Jesus desde a Galileia, é gente pobre, humilde, devota, que se desloca em caravana para cumprir a tradição e viver a festa da Páscoa em peregrinação ao Templo. Gente de fé, disposta a escutar, preocupada em viver de acordo com os mandamentos, com a Lei, ainda que sacrificada pela autoridade, nomeadamente na sobrecarga de impostos. A outra multidão é composta por pessoas da classe média e média-alta, judeus mais citadinos, homens e mulheres livres, mais preocupados em saber para onde corre o vento! Conforme as marés, assim as escolhas. É uma multidão interesseira que se deixa anestesiar e controlar pelos seus chefes. A manipulação produz os seus frutos e, seguindo os doutores da Lei e os escribas, a multidão pede a cabeça de Jesus: crucifica-O, crucifica-O.
Recuperamos novamente a reflexão de Timothy Radcliffe e Lukasz Popko, no livro “Perguntas de Deus, perguntas Deus”, que nos mostra um Pilatos titubeante, dúbio, indeciso. “Pilatos deixou de ouvir Jesus, passou a ouvir e ‘ir ao encontro da multidão’…. Uma multidão não tem rosto. Costumam dizer que tem ‘um só coração’ ou ‘uma só mente’, mas estou inclinado a dizer que não tem um nem outra. Tem emoções, por certo, e vontade, mas não muita razão. Um pesadelo voluntarista”. No recanto do Palácio, Pilatos dialoga com Jesus, interroga-O, parece preocupado. A mulher incentiva a sua indiferença: não te importunes com esse Homem, já me perturbou em sonhos! Não te incomodes, não te comprometes, lava as tuas mãos, passa a responsabilidade para os outros. Uma não-escolha, sabemos claramente, é uma escolha, é deixar que os outros escolham por nós. O diálogo até que gera em nós alguma simpatia. Pilatos aparenta preocupação. Sol de pouca dura. Quando a gritaria se impõe, quando os chefes dos judeus não desarmam, quando Pilatos vê o seu lugar ameaçado, deixa de pensar em Jesus, de defender a verdade e a justiça, e passa a contar a defesa do seu cargo e da sua posição. Tenta agradar a gregos e troianos! Com as chicotadas com que permite a tortura de Jesus, está em negociação entre a consciência e a gritaria da multidão. É lá convosco, fazei o que quiseres com Ele, está nas vossas mãos, as minhas estão lavadas de qualquer responsabilidade, de qualquer culpa!
Noutro plano, vemos a multidão como obstáculo, impedindo o acesso a Jesus, ou guiando os que suplicam a Sua misericórdia!
A multidão informe, sem nome, nem rosto, que rodeia Jesus, O segue e O escute, tem o desafio de permanecer como multidão ou de se desfazer para ser comunidade, para formar a multidão dos discípulos, acolhendo-O, alimentando-se do Seu amor, testemunhando-O com alegria. Somos multidão ou discípulos? Multidão ou comunidade?
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 94/48, n.º 4776, de 30 de outubro de 2024