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Editorial: A leveza de ajoelhar

As aves voam, porque possuem asas e penas, e músculos fortes, sobretudo do peito, e porque os ossos são pneumáticos, porosos, com pequenos buracos onde circula o ar. O oxigénio é distribuído por todo o corpo, também pelos ossos “ocos”. O centro da gravidade está localizado entre as duas asas e a cabeça, possibilitando o levantar e sustentar do corpo com maior eficiência.

Imaginemos que um pássaro magoa uma pata. Será que consegue voar? Dificilmente. O corpo está todo preparado para voar, mas precisa também do impulso das patas para o início do voo. O Papa Bento XVI dizia precisamente que a agilidade dos pássaros está na flexibilidade de dobrar as patas. Estas aparentam ser, em muitas aves, bastante frágeis, mas são elas que suportam o corpo e permitem o impulso. Observando a dificuldade de um pássaro em levantar voo, na maioria das vezes, veremos que está ferido numa asa ou numa pata.

Liturgicamente, nestes domingos, o Evangelho serve-nos o Sermão da Montanha, que se inicia com a proclamação das Bem-aventuranças. Num olhar rápido poderemos pensar que Jesus exalta a pobreza, a miséria, o choro, a perseguição, a vitimização. Mas olhando mais fundo veremos que Jesus fala de compromisso, empenho, luta, resistência, vivência do amor de Deus no amor aos irmãos, fidelidade à verdade e à justiça, dando prioridade e preferência à paz e à misericórdia. Jesus gasta-Se e gasta a Sua vida, oferecendo-Se por inteiro a favor da humanidade. Quando nos agridem, em palavras ou fisicamente, a reação imediata e (quase) reflexa é responder na mesma moeda, dobrando a agressão, acentuando o maldizer. Mas, nessa reação ficamos sempre com o sabor amargo da agressão e da tensão e da tristeza, porque nos agredira, fizemos o mesmo, e sobreveio a inquietação, a ansiedade, o sobressalto que hão de permanecer e fazer-nos mastigar a dor. Não é fácil controlar e resistir aos nossos impulsos mais básicos e, no entanto, diz-nos Jesus, esse é o caminho que nos humaniza, nos irmana e nos diviniza. A vingança não nos devolve a paz, a autoestima, a alegria, pois gera mais violência, azedume, desconfiança, fechamento. A humildade não passa pela vitimização nem pela resignação ou demissão. Pelo contrário, exige coragem, resistência e compromisso pela justiça e pela paz. Dobrar os joelhos pode exigir sacrifício, sofrimento, luta com o nosso “eu”.

A vida de Jesus é luminosa. A opção é amar, dar a vida, ajudar, expor-se às necessidades do outro, não porque se é obrigado, pela tradição, pela cultura, pela religião, pelo ambiente social, mas por escolha pessoal, reconhecendo que há mais alegria em dar do que em receber. Em nós, a humildade, a pobreza e a comoção resultam do amor a Deus, enquanto resposta, vivido e concretizado no amor aos outros. Quem ama (de coração) coloca o outro em primeiro lugar. Jesus expõe-Se por inteiro, abdicando de qualquer prorrogativa divina, de qualquer poder; faz-Se pobre e dispõe-Se amar ao ponto de não reservar nada para Si, nem tempo, nem a própria vida (biológica).

A soberba, o orgulho e a sobranceria conduzem à violência, à destruição de pessoas e de bens.

Dobrar os joelhos, acolhendo a misericórdia de Deus, enchendo-se da ternura de Jesus, traduzindo e concretizado no serviço e no cuidado ao próximo, que reconhecemos e amamos como irmão, é um caminho que constrói a vida, enforma a felicidade, aproximando-nos de um mundo mais solidário fraterno.

Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 93/11, n.º 4691, 1 de fevereiro de 2023

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