Ou os pedaços da nossa fé, que é dom e é totalizante, abarca a nossa vida por inteiro, a minha vida e a tua vida, trespassando-a e iluminando inteligência, vontade e sentimentos. Acolhe-se, não aos pedaços, mas inteira, porque a fé é encontro com Jesus Cristo. É Jesus que acolhemos. Recebemos Jesus, recebemos a Santíssima Trindade, Pai e Filho e Espírito Santo. A fé, dom que nos faz acolher Deus na nossa vida, não é divisível, compartimentalizável, porque não podemos receber Deus aos bocados, mesmo que seja nos pedaços de pão, na Eucaristia, que se partem e repartem. Com efeito, a hóstia consagrada pode partir-se em mil pedaços, mas cada pedacinho nos traz Jesus Cristo inteiro, na Sua entrega, morte e ressurreição.
O lema para o ano pastoral 2023-2024 fixou-se na expressão de são João: Recolhei os pedaços que sobraram (6, 12). Esta escolha foi explanada na Carta Pastoral de D. António, nosso Bispo, que pode ser revisitada. Na palavra de Deus encontraremos a abundância do pão, a abundância de Deus, do Deus que Se faz carne em Jesus, igual a nós exceto no pecado.
A palavra “pedaços” evoca uma expressão clamada há alguns anos pelo Papa Francisco e que se acentua cada vez mais: terceira guerra mundial aos pedaços!
Os pedaços dos pães geram partilha solidária. Na referida passagem, Jesus levanta os olhos ao Céu, reza, abençoa, provoca e incentiva a partilha. A multidão está saciada e sobeja o alimento em abundância e tal é “fartura” que chega para outras multidões. Abrimos os olhos e vemos que o pão é o próprio Jesus que Se dá. Chegamos ao mistério da Eucaristia. Naquele pedaço de pão, a grandeza, a omnipotência de Deus, o milagre por excelência. O grande faz-se tão pequeno que cabe na palma da mão, da minha mão e da tua mão, do meu coração e do teu coração, e da nossa vida por inteiro. A eternidade fez-se caminho e vem habitar o tempo, a omnipotência de Deus faz-se pequenez, Ele coloca-Se ao nosso mesmo nível. Em Cristo, podemos vê-l’O, encontra-l’O, abraçá-l’O, amá-l’O… O pão, feito de muitos grãos, pode ser partido e chegar a muitas mãos. A partilha aproxima-nos e faz-nos irmãos, faz-nos família.
Por sua vez, os pedaços da guerra destroem, dividem, aniquilam, geram mais fome, produzem, multiplicando adversários e inimigos. Caim e Abel!
Na escuta e reflexão do Evangelho (Mc 6, 30-34) do XVI Domingo do Tempo Comum (ano B), encontro um bom pedaço, a fé que se vislumbra na delicadeza! Depois do envio e da missão – anúncio o Evangelho, cura dos doentes, expulsão de demónios –, os apóstolos regressam e contam a Jesus quanto ensinaram e fizeram. Eis a reação de Jesus: vinde para um lugar isolado e descansai um pouco. O evangelista completa a informação dizendo que havia sempre muitas pessoas a chegar e a partir que não tinham tempo para comer. A fé não é abstrata, é real e concreta, da mente ao coração, do coração às mãos. A fé expressa-se no proceder do bom Samaritano, olha e aproxima-se para ver, já não um desconhecido, mas um irmão que importa ajudar. A fé traduz-se em delicadeza, proximidade, prontidão, como a de Maria nas Bodas de Caná. Maria não espera que lhe peçam ajuda, está atenta e percebe que aqueles noivos, as suas famílias, estão em maus lençóis, e intervém. A fé liga-nos à eternidade, mas também nos une aos irmãos. Jesus escuta os discípulos, mas vê que o entusiamo não esconde o cansaço. “Vinde para um lugar isolado e descansai um pouco”. Tão concreta a fé de Jesus, o Seu olhar amoroso, não lhe ouvimos um discurso, é prático. É preciso descansar e alimentar o corpo!
É este o pedaço de fé que hoje vos proponho: a delicadeza, a proximidade e a prontidão de Jesus. A fé humaniza, aproxima-nos, irmana-nos, compromete-nos!
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 94/35, n.º 4763, de 24 de julho de 2024.