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Diário de um Sobrevivente Urbano

Não precisei de muitos dias na cidade para perceber que algo não estava a funcionar. Mal entrei na cidade, logo me deparei com uma situação digna de um filme de comédia: um senhor achou por bem parar o carro bem à porta para “comprar rapidinho”. Claro, o seu conceito de “rapidinho” parecia uma eternidade. Atrás de mim, formava-se uma fila de carros que mais parecia um desfile de caracóis apressados.

O senhor, com a tranquilidade de quem acha que a via pública é uma extensão da sua garagem, ainda deu uma passadinha na loja ao lado. Porque não? O que são uns minutinhos a mais? Afinal, quem precisa de cumprir horários quando está numa missão de compras de última hora?

Enquanto isso, os carros atrás de mim multiplicavam-se. Meia hora depois, o herói da paciência voltou ao carro, como se nada tivesse acontecido. E, acreditem ou não, cinco metros adiante, um outro iluminado decidiu fazer o mesmo. Talvez fosse algum tipo de competição de “quem consegue irritar mais condutores em menos tempo”. Spoiler: todos venceram.

Esta experiência surreal não se limitou às travessuras automobilísticas. Noutro momento de brilhantismo, ao aproximar-me de uma passadeira, um peão atravessou a rua com a graciosidade de um ninja bêbado, sem qualquer aviso. Travei bruscamente, como que a testar a eficácia dos meus airbags, enquanto o peão seguia como se estivesse num campo de margaridas.

O que é que está a acontecer com as pessoas? Será que andam a praticar desportos radicais urbanos? Ou será uma nova tendência de mindfulness ao contrário, onde se ignora completamente o impacto das próprias ações?

Então, a grande questão é: estes comportamentos bizarros são fruto de falta de civismo, excesso de stress ou egoísmo puro e simples? Talvez seja uma mistura de tudo isso, temperada com uma boa dose de “eu primeiro”. A verdade é que as ruas da cidade viraram um campo de batalha onde o respeito e a empatia foram substituídos por um jogo incessante de quem consegue ser mais inconveniente.

Precisamos, urgentemente, refletir sobre como as nossas ações afetam os outros e redescobrir o valor de ser um pouco mais humano. Ou, pelo menos, um pouco menos inconveniente. Afinal, não somos os reis disto tudo, até porque a monarquia já terminou.


in Voz de Lamego, ano 94/36, n.º 4764, de 31 de julho de 2024.

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