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Deus mora onde o deixamos entrar

O centro da vida cristã é a liturgia e o centro da liturgia é o mistério pascal, celebração da morte redentora de Jesus e Sua Páscoa gloriosa. A morte como expressão de entrega, de dádiva, por amor, até ao fim, até serem esgotadas todas as possibilidades, até não haver mais nada para dar, porque já se deu tudo. A ressurreição como abertura do amor à vida, pois esta perdura sempre e quando o amor está no comando, o amor de Deus, Deus que é Amor. Na manhã de Páscoa, irradia, em todo o seu esplendor, a vida, a presença do Ressuscitado no meio de nós, já não na limitação do espaço ou do tempo, mas na vastidão do Céu, deste Céu que não cai sobre nós, mas que nos protege, nos alcança e nos desafia a vivermos como ressuscitados, como novas criaturas, de Deus para Deus. Origem, criados por Deus, e fim, quando a Ele regressarmos. Isso faz-se sintonizando a nossa vontade com a de Deus, procurando acolher, viver e testemunhar o Evangelho da Alegria e da Caridade, seguindo de perto as pegadas do Mestre da Vida, Jesus Cristo nosso Bom Pastor.

Depois de quarenta e seis dias (descontando os seis Domingos, para nos fixarmos nos 40 dias) da Quaresma, depois de 50 dias de Tempo de Páscoa, regressamos ao Tempo Comum, ordinário, a partir da segunda-feira depois do Pentecostes. Trinta e quatro Domingos, trinta e quatro semanas, em que a liturgia nos faz viver e celebrar a vida como um todo, a de Jesus e a nossa, não sublinhando um aspeto específico, como Natal ou Páscoa, nascimento ou ressurreição, mas a vida por inteiro. Há momentos, na vida de Jesus, e na nossa também, que são aglutinadores, pelas marcas que deixam, pela intensidade com que são vividos, pelas alterações que provocam, pela definição de um rumo ou de um fim, entendido não apenas como termo, mas como sentido orientador das opções seguintes. Depois há toda uma vida, com altos e baixos, alegrias e tristezas, rotinas, trabalho e sacrifício, encontros e confraternização, caminho, sonhos, projetos, desencontros, luta, compromisso, resiliência, que nos fazem caminhar, buscar, agradecer, celebrar, ajudar, partilhar, valorizar as pessoas que nos acompanham e os instantes em que sentimos a vida a pulsar. Semana a semana, Domingo a Domingo, acompanha-nos, na nossa vivência cristã, o mesmo mistério salvífico revelado, assumido, encarnado, plenizado por Jesus. O ritmo dos nossos dias é marcado por rotinas, horários, compromissos, em agendas que, em alguns casos, se enchem de nada, de nada que realmente nos realize e beneficie, mais cedo ou mais tarde, os nossos semelhantes. Mas que seja, é aí também que a graça de Deus atua, é aí, em todos os instantes, locais e situações, onde pulsa a vida, a nossa vida, que Deus Se dá a conhecer, ilumina as nossas opções, guiando-nos por caminhos de verdade, bondade e ternura.

O rabino Mendel de Koretz perguntou a homens sábios que o visitavam: onde mora Deus? Como se rissem, o próprio responde-lhes: «Deus mora onde o deixamos entrar». A citação é de Martin Buber, que conclui em jeito de interpelação: “Eis, pois, aquilo que, no fim de contas, importa: deixar entrar Deus. Mas só O podemos deixar entrar lá onde estamos, onde realmente estamos, lá onde vivemos, onde se vive uma vida autêntica. Se cultivarmos relações santas com o pequeno mundo que nos foi confiado, se, no recanto da criação em que vivemos, ajudarmos a sacrossanta substância espiritual a chegar ao seu cumprimento, então prepararemos para Deus uma morada no nosso lugar, então deixamos entrar Deus”.


Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 93/29, n.º 4709, 7 de junho 2023

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