Há pouco tempo trouxe aqui uma canção da Nena, jovem cantora portuguesa, muito em voga nas rádios e nas redes sociais: “Eu não ouvi / Estava de fones nos ouvidos, o meu avô / Contou-me histórias, deu-me livros, estão em mim / Mas não sei bem, parece que ficou metade / Hoje digo olá a conhecidos / Se parar eu acho que me lembro / Dizem que sem fones nos ouvidos / Vamos todos ainda a tempo”.
Ainda vamos a tempo. Precisamos de nos ouvirmos, uns aos outros. Escutar o outro. Escutar não apenas com os ouvidos, mas também com o coração. Nas relações humanas, é essencial a escuta. A fé vem da escuta da Palavra de Deus e conduz à escuta.
“Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Ora, como hão de invocar Aquele em quem não acreditaram? E como acreditarão naquele de quem não ouviram falar? E como hão de ouvir, se não houver quem lhes proclame? E como hão de proclamar, se não forem enviados? … a fé vem pela escuta, que é a escuta da palavra de Cristo” (Rom 10, 13-17).
Jesus, na senda dos profetas, sobretudo de João Batista, dedica-se a anunciar a Boa nova, a Palavra do Pai, de que é rosto e presença e plenitude. O início da vida pública dá lugar ao ministério do anúncio. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho.
Escutar com o coração. Os apóstolos questionam Jesus por Ele falar em parábolas. A Sua resposta é uma provocação à escuta dócil e atenta. “É por isso que lhes falo em parábolas: porque vendo, não veem, e ouvindo, não ouvem nem entendem. … Endureceu-se o coração deste povo: eles escutaram com ouvidos endurecidos e fecharam os seus olhos… Felizes os vossos olhos porque veem, e os vossos ouvidos porque ouvem” (Mt 13, 13-17).
Ouvimos muito, escutamos pouco, estamos a ficar surdos… Ouvimos música, ruídos, o que está longe, metemos os fones, ouvimos as nossas coisas, damos sinal aos outros para que não nos falem, não nos chateiem. Tantas vozes e não escutamos. É um nível de distração que se alastra. Se colocarmos os fones de lado, talvez ainda vamos a tempo de reconstruir este nosso mundo neste tempo de tamanhas turbulências.
Precisamos de ouvir com o coração. Como bem diz Antoine de Saint-Exupéry, no Principezinho, o essencial está vedado aos olhos, é visível ao coração.
São Bento de Núrsia, no início da Regra, invetiva: «Escuta, ó filho, os ensinamentos do mestre e estende-lhes o ouvido do teu coração». Bento XVI deixa claro que só o coração nos faz sintonizar com Deus e com os sofrimentos dos irmãos. “É, portanto, também um convite para ser sensíveis a esta presença do Senhor que bate à minha porta… Reflitamos, ao mesmo tempo, se estamos realmente disponíveis para abrir as portas do nosso coração; ou talvez neste coração cheio de tantas outras coisas não haja espaço para o Senhor e, por enquanto, não temos tempo para o Senhor. E assim, insensíveis, surdos à sua presença, cheios de outras coisas, não ouvimos o essencial: Ele bate à porta, está perto de nós e assim está perto a verdadeira alegria, que é mais forte do que todas as tristezas do mundo, e da nossa vida”.
Por sua vez, o Papa Francisco desperta-nos para esta urgência: “A partir das páginas bíblicas aprendemos que a escuta não significa apenas uma perceção acústica, mas está essencialmente ligada à relação dialogal entre Deus e a humanidade. O «shema’ Israel – escuta, Israel» (Dt 6, 4). O rei Salomão, apesar de ainda muito jovem, demonstrou-se sábio ao pedir ao Senhor que lhe concedesse «um coração que escuta» (1 Rs 3, 9). E Santo Agostinho convidava a escutar com o coração (corde audire), a acolher as palavras, não exteriormente nos ouvidos, mas espiritualmente nos corações: «Não tenhais o coração nos ouvidos, mas os ouvidos no coração». E São Francisco de Assis exortava os seus irmãos a «inclinar o ouvido do coração»”.
Libertemos os ouvidos, coloquemos os fones de lado, escutemos com o coração, a Deus e uns ao outros.
Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 95/11, n.º 4788, de 29 de janeiro de 2025