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Crise e crivo, caos e cosmos

O projeto “Scholas Occurentes”, escolas com sentido, é uma herança do Papa Francisco, criada em 2013, mas que já estava em gérmen na Argentina, com o desafio do então Cardeal de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, com a escola de vizinhos, procurando criar espaço e oportunidade para os adolescentes, acolhendo e integrando sensibilidades, culturas, condições sociais, sem tentar mudar, mas dar sentido ao caminho e procurar caminhar em conjunto.

Uma destas escolas está em Cascais. No âmbito da JMJ 2023, foi proposto ao Papa a visita a esta Scholas Occurrentes de Cascais, e ele aceitou com agrado. “É um espaço onde cada um contribui com aquilo que tem, de valores éticos e morais, para o bem-estar da comunidade, independentemente da própria religião ou origem. Sou muçulmano da Guiné Bissau, mas sinto-me parte deste espaço. E, como muçulmano, sinto a obrigação e o dever de me unir e fazer parte deste movimento”.

A marca JMJ 2023 continua muito presente! É tempo de acolher e potenciar o que ficou. A presença do santo Padre, os seus gestos, as suas intervenções conseguiram empolgar. Nos últimos editoriais procurei sublinhar uma ou outra palavra ou imagem usada pelo Papa. As palavras escritas não têm a mesma força da oralidade, mas permitem reler, refletir, aprofundar, ver o contexto de algumas expressões que foram sendo sublinhadas pela comunicação social e pelas redes sociais.

Neste encontro, o Papa respondeu a perguntas. Dessas respostas, destacam-se quatro palavras. A crise pode ser vivida e encarada como tempo de crivar, filtrar, peneirar, absorvendo ou recolhendo o que é positivo e nos conduz para a frente! O caos, assumido, pode converter-se em cosmos. Vivemos um tempo com muitos sinais de morte, como tem dito o papa, vivemos a terceira guerra mundial aos pedaços, mas isso não nos deve fazer baixar os braços ou abdicar da esperança e do compromisso em transformar o mundo. O mundo muda com o compromisso de cada um, com o compromisso de todos!

Resposta do santo Padre: “Tu dizes «caos», está bem! É a crise… Sabe donde vem a palavra «crise»? Quando se recolhia o trigo, passava-se pelo crivo, crivava-se… (Notai o parentesco entre «crise» e «crivar»). E a crise, nas pessoas, são situações da vida, acontecimentos, problemas orgânicos, mau humor ou bom humor. Isto criva-te e tu deves escolher. Uma vida sem crise é uma vida asséptica. Gostas de beber água? Gostas. Mas, se te der água destilada, não presta, não sabe de nada! Uma vida sem crise é como a água destilada, não sabe a nada… As crises têm que ser atravessadas, devemos aceitá-las. E raramente sozinhos. Também isto é importante no grupo Scholas: caminhar juntos para juntos enfrentar as crises, resolver as coisas”.

“Alguém dizia que a vida do homem, a nossa vida humana, é fazer do caos um cosmos… E como começou a história? Como se transformou o caos em cosmos? Lá, em linguagem poética, narra-se como Deus um dia do caos fez a luz, noutro dia faz o homem e continua a criar coisas e a transformar o caos em cosmos. Na nossa vida, sucede o mesmo: há momentos de crise (retomo esta palavra!), que são caóticos, deixas de saber em que ponto estás. Todos atravessamos estes momentos escuros. Caos. E aqui o trabalho pessoal, o trabalho das pessoas que nos acompanham, dum grupo como este, é transformar em cosmos. … Nunca vos esqueçais disto: transformar o caos num cosmos… Uma vida que permanece caótica é uma vida falida, e uma vida que nunca sentiu o caos é uma vida destilada, onde tudo é perfeito. E as vidas destiladas não dão vida, morrem em si mesmas”.


Pe. Manuel Gonaçlves, in Voz de Lamego, ano 94/02, n.º 4730, de 15 de novembro de 2023.

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