Poucos meses depois da independência de Moçambique, muitos edifícios das Missões foram nacionalizados em nome das estruturas políticas. As estruturas justificavam tudo. A irmã Elvira de Nespereira cuidava duma casa de idosas doentes quando lhe batem à porta uns três homens, bastante novos, a exigir uma parte da casa para outros fins. Eram ordens das estruturas. Passados dias, recebe nova visita a exigir a totalidade da casa, intimando-a a arranjar emprego porque nenhum estrangeiro podia permanecer, em Moçambique, sem trabalhar. E as idosas doentes? As estruturas dizem que isso não é trabalho. E, por ordem das estruturas, foi trabalhar como enfermeira para o hospital mais próximo.
Passados meses, foram intimadas a participar num comício de mentalização. Depois duns discursos longos e repetitivos, vieram os “vivas” ao camarada Machel, a Moçambique livre e independente, e, os “abaixo” aos colonizadores, abaixo Portugal. As freirinhas apoiaram os vivas e guardaram silêncio nos morras. Foram chamadas às estruturas. Defenderam-se que Portugal era a sua Pátria e a constituição manda respeitar a Pátria.
Vem a Portugal, uns anos depois, e os jovens da Paróquia mobilizaram-se e encheram um contentor com roupa, muitos medicamentos recolhidos em muitas casas, devidamente catalogados e bastante dinheiro. Chegada a Moçambique, foi buscar o contentor. Não podia levá-lo, ficava nas estruturas. Também precisavam, escreve a freirinha.
Já, aqui, em Barrelas, lancei, nas escolas, uma campanha – “um quilo de milho p’ra Moçambique” e, na Rádio – “Um sorriso p’ra irmã Elvira”. E muitos professores, alunos e muitas pessoas conseguiram dar pão e água – pela abertura dum poço – às crianças e velhinhas duma aldeola moçambicana.
Vem isto a prepósito dos nossos Lares de Idosos que, oficialmente, se chamam ERPIS, “Estrutura Residencial para Idosos”. Pode lá ser! A estrutura supõe malhas de ferro, cimento armado, tudo duro, frio, gélido!… Ao passo que Lar é calor, ternura, aconchego, carinho e amor…
Se os idosos têm relutância em abandonar a sua casinha, as suas recordações, o seu cantinho para irem para os Lares, mais dificuldade sentirão dizendo-lhes que vão para uma Estrutura.
Mas também já substituíram a palavra UTENTE por CLIENTE sob o pretexto que dá mais dignidade à pessoa. A dignidade não vem do nome cliente ou utente. A dignidade vem de ser pessoa, de ser imagem de Deus. Cliente supõe comércio, negócio; e utente é o que usufrui o serviço, o cuidado, o carinho, o aconchego. E os responsáveis, chamados “corpos sociais”, trabalham gratuitamente, não são negociantes, são pessoas generosas que se dão aos outros. Não troquemos o nome às coisas, aos lugares e, muito menos às pessoas. Não arranquemos a alma e o coração ao que representam de sentimentos, de ternura, de generosidade aos nossos Lares, sobretudo aos paroquiais. Ainda bem que, ao referirem-se aos mortos, dizem que já tiveram “alta divina”.
Mas voltemos à nossa freirinha que me forneceu assunto para estes rabiscos. Ao celebrar cinquenta anos de África, carregada de anos e de méritos, mesmo contra a sua vontade – queria morrer em África -, veio para a ERPI da sua Congregação. Ao saudá-la, telefonicamente, pela entrada na nova estrutura, responde mal-humorada: – “Canudo, p’rás estruturas”.
No princípio do mês de setembro, um telefonema da capital informava-me que Deus, na Sua divina misericórdia, chamara a irmã Elvira para as Celestiais Estruturas.
Pe. Justino Lopes, in Voz de Lamego, ano 94/16, n.º 4744, de 28 de fevereiro de 2024.