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As duas multidões, a que aclama e a condena

A vida vale, mais que pelo número de anos, pela intensidade com que se vive. Uma fração de segundo, um acontecimento, uma pessoa, pode valer por uma vida inteira. Atravessamos a Semana Maior da nossa fé. Há uma vida que vale a salvação da humanidade. São horas que valem tudo. São horas dramáticas e decisivas. Diríamos, a nosso favor, que são horas felizes porque Jesus nos mostra em definitivo que o amor de Deus por nós é infinito.

Suor e lágrimas, cansaço, dor física, traição e fuga dos amigos, violência, injúrias, crucifixão e morte. Naquelas horas, Jesus há de ter vivido na maior das ansiedades. Caminha inexoravelmente para a morte. Sobe a Jerusalém pela Festa da Páscoa. Há um vislumbre de paz e de festa, de reconhecimento e de amizade. Com Jesus, os seus amigos, discípulos, alguns familiares, conterrâneos. Segundo Joseph Ratzinger / Bento XVI, a multidão que aclama Jesus na entrada triunfal em Jerusalém é constituída por galileus, pobres, agricultores e artesãos, pedintes, discípulos, mulheres, pessoas que Ele curou e reabilitou.

Alguns judeus agregam-se, por curiosidade, por amizade, em processo de conversão. Jesus tinha amigos nas redondezas, em Betânia, a família de Lázaro, Marta e Maria, e em Jerusalém, o amigo que lhe empresta a casa para comer a Páscoa. Sendo poucos, mostram que Jesus não é propriedade exclusiva de um grupo. É visível a alegria desta multidão vinda da Galileia, cujas pessoas trajam as melhores roupas, pobres mas limpas, cheias de fé, vêm adorar Deus no Templo por ocasião da Páscoa, exploradas mas acreditando na proteção divina.

No entretanto, entre os dois momentos, a Última Ceia, um momento de repouso, de alegria, de festa, que satisfaz uma necessidade e coloca em comunhão íntima os convivas. Situemo-nos junto de Jesus, como discípulos, como Judas e como Pedro, como João e Tiago ou Tomé, como Maria, Sua Mãe, Maria Madalena ou Maria de Cléofas, como crianças, que não contam, e como pobres que se sentam como amigos. Estamos todos? Festejemos enquanto há tempo.

Depois da refeição, Jesus retira-Se para o Jardim das Oliveiras, para rezar. O ambiente é pesado, pois as notícias deixam antever um desfecho pouco favorável. Jesus tinha sido claro, deixando entrever que o tempo era escasso e que tudo se iria precipitar.

Ainda estava a falar com os discípulos quando uma multidão se aproximou. Estoutra multidão é formada por judeus, oriundos sobretudo de Jerusalém. Também aqui, por certo, há pessoas simples e ingénuas e que se deixam convencer pelos líderes religiosos, políticos e sociais, e outros tantos que sem opinião formada seguem qualquer voz que se eleve com promessas fáceis.

Judas encabeça este grupo. Um dos amigos mais fiéis e mais bem formado, não resistiu a entregar Jesus! Porquê? Não há uma resposta definitiva. Também a não temos quando os que nos são mais caros nos desiludem. Porquê, se sempre nos demos tão bem? Por não acreditar em Jesus e no Seu projeto de amor? Ou como sugerem alguns, por acreditar tanto mas não ter paciência para esperar por Deus?

A oração de Jesus, a Sua intimidade com o Pai, ajudam a enfrentar esta hora. A violência não resolve. É arrastado, escarnecido, os discípulos não O acompanham. Judas trai. E todos O traem. Pedro nega-O. Todos os apóstolos se mantêm à distância. Fogem. Parece que quando se amontoam as dificuldades, mais pessoas se apresentam a acusar, injuriar, a blasfemar.

Caminhamos todos para o Calvário, mas para prosseguir além da Cruz e da morte. Somos parte da multidão. Judeus e soldados romanos. Mãe e mulheres. Autoridades judaicas e executores materiais de decisões e juízos convenientes. Estamos todos? É por todos que Jesus Se consome inteiramente!

Ecoam até ao túmulo as últimas palavras de Jesus: «Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito». No meio daquele torpor guardamos a certeza da entrega confiante de Jesus nas mãos do Pai. Entrega-Se e entrega-nos, confia-nos, a Deus, Pai de Misericórdia.


Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 95/22, n.º 4799, de 16 de abril 2025

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