Nicola Vegro é um realizador italiano, escritor e argumentista, autor de curtas-metragens e documentários sobre a realidade da juventude, as tradições populares e religiosas, a emigração italiana para os EUA. Em 1995 escreveu o tema e o guião para o filme “António Segreto” que aguarda para ser realizado.
Mas até que haja filme, temos entre mãos um belíssimo romance histórico sobre santo António de Lisboa ou de Pádua, conforme o vejamos como portugueses ou outros o vejam a partir de Itália. Seiscentas páginas! Para uma biografia, de um santo considerado como tal já em vida, e cujo processo de canonização foi dos mais rápidos da história, podem não ser muitas páginas ou podem ser demasiadas! O formato escolhido torna, a meu ver, a leitura mais empolgante, mais agradável, mais envolvente. Na verdade, as histórias encandeiam-se como num filme, numa escrita fácil, agradável, percetível, como quem desliza no escorrega. Gera-se a vontade de chegar mais à frente, de chegar a outro capítulo, e mais outro, e mais páginas. Quando damos conta já estamos para lá do meio e, mais um pouco, e estamos a encaminharmos para o desfecho.
Neste romance descobrimos que só a morte parou o santo português. Muitas vezes repetiu aos seus confrades: para descansar teremos um dia, então sim, descansaremos para sempre, agora temos de anunciar a palavra de Deus, de atender as pessoas, de confessar, de dar conforto a quem nos procura, de ajudar quem precisa. Com fama de santo, ainda em vida, com pessoas a atribuir-lhe milagres, curas, ainda assim não beneficiou dessa santidade, pois a doença esteve presente na sua vida.
Fernando Martins de Bulhões, nome de batismo, filho de Martinho de Bulhões, descendente de cavaleiros celtas, e de Maria Teresa Taveira, fidalga, descende de Fruelas, rei das Astúrias, terá nascido em (15 de agosto de) 1195, em Lisboa. E morreria a 13 de junho de 1231, em Pádua, com 35 anos. Tão jovem e tão memorável a sua vida. Menos de um ano depois, em 30 de maio de 1232, foi canonizado pelo Papa Gregório IX, na catedral de Espoleto, em Itália. O Papa Pio XII, em 1946, proclamou-o “doutor da Igreja”, considerando-o “exímio teólogo e insigne mestre em matérias de ascética e mística”.
A obra, que recomendamos como leitura, é uma publicação das Edições Paulinas e conduz-nos, inicialmente, ao convento de Santa Cruz, em Coimbra, dos agostinianos, onde Fernando de Bulhões iniciou a sua vida de religioso e onde viria a encontrar os frades menores, que aí ia pedir dádivas para os pobres. Outro facto importante, é a passagem de cinco missionários franciscanos, em trânsito para Marrocos, onde viriam a ser degolados. A experiência com esses monges e depois com a história do seu martírio, alterou para sempre a vida de Fernando, que adotou o nome de António, com o propósito de também ele dar testemunho de Jesus, se necessário com a própria vida. Pouco depois de ser ordenado sacerdote, tornou-se franciscano. Quis seguir o exemplo dos mártires marroquinos, mas Deus tinha-lhe reservado outros destinos, outras terras, outras pessoas, sobretudo em Itália, mas também em França, fixando-se, por último em Pádua. Daí que seja conhecido também como santo António de Pádua.
Das seiscentas páginas, apresentamos alguns parágrafos, já do final, para dessa forma terdes o contacto direto com o texto, e com a forma com que o autor nos dá a conhecer a vida e obra de santo António:
Sexta-feira, 13 de junho de 1231
Se, naquela tarde soalheira de junho, um viajante desconhecido se perdesse no campo dourado de trigo maduro; se tivesse ido parar àquele caminho esbranquiçado de pedras e pó, queimado pelo sol, apenas habitado pelo ensurdecedor som das cigarras; se esse viajante desconhecido, esgotado pelo cansaço e extenuado pela sede parasse a perguntar para onde estava a ir, de certeza que se cruzaria com uma carroça desconjuntada, puxada por dois bois desirmanados e empurrada por cinco desgraçados vestidos com saios esfarrapados.
Se o desconhecido viajante tivesse conseguido ver ao longe, teria visto os camponeses a avistar aquela carroça, deixar o trabalho, chamarem-se uns aos outros em alta voz e correr, correr para ajudar.
Se esse viajante tivesse conseguido encostar o ouvido àquela carroça, no meio do ruído dos passos e do chiar das rodas quebradas, naquele vozear baixo e arfante, teria conseguido ouvir palavras revestidas de oração.
– Não tenham pena de mim, vai passar – sussurrava um homem de rosto desfigurado. – Fiquem serenos, porque já vejo nosso Senhor.
Estendido sobre uma placa coberta com palha, António contemplava as nuvens do céu que, movidas pelos sobressaltos da carroça, pareciam mexer-se como as ondas do mar. Levou as mãos ao pescoço e apertou o Tau.
«Fernandinho, meu pequenino, onde estás?» – Estou a chegar, minha mãe – respondiam os lábios.
– Mais depressa, mais depressa apelavam as vozes esgotadas.
– Mais depressa, mais depressa – repetiam uns para os outros dando-se força mutuamente, enquanto os pés lacerados manchavam de sangue cada passada. E, passo após passo, na angústia do auxílio extremo, aquelas vozes angustiadas fundiam-se umas nas outras. Cada som transformava-se em oração até se converter numa única voz.
Se o desconhecido viajante tivesse asas de falcão e voasse no alto do céu, teria visto aquela voz avançar mais depressa do que a carroça e correr, correr de boca cm boca até se transformar em vento.
Se viajante tivesse olhos de falcão, do alto do céu teria visto aquele vento agitar-se, rodar como uma turbina e apontar na direção da cidade amuralhada e, à sua passagem, presságio de tempestade, teria visto as varandas fecharem-se a toda a pressa, entaiparem as lojas, os homens chamarem-se uns aos outros e a mães saírem à rua, a fim de reunirem as crianças e, em cada casa, nas ruas e nas igrejas, teria visto as velhas prostrarem-se, curvar-se até ao chão, rezar e acender círios, para esconjurar a enorme desgraça.
Se o desconhecido viajante tivesse seguido aquela carroça, teria visto a estrada encher-se de multidão. Teria visto mulheres sem esperança deitarem-se ao chão e invocar piedade; e ladrões, assassinos, miseráveis, poderosos, prostitutas e lojistas, ajoelharem-se à sua passagem e pedir perdão, de cada lado da estrada, formando um majestoso cortejo.
– O Santo… António, o Santo morreu…
– António, o Santo, morreu – repetiam, incrédulas, as vozes em todos os caminhos.
Se o desconhecido viajante tivesse seguido aquela carroça, tê-la-ia visto chegar, depois do pôr do sol, lá para a noite, a uma igrejinha, pouco afastada da cidade, escoltada por dezenas de guardas a cavalo que, suados e nervosos, travavam o passo aos animais agitados. Teriam visto aquela carroça avançar entre duas filas de polícias, unidos uns aos outros, para conter a multidão enlouquecida.
– Paremos a carroça! Não a deixemos avançar! – gritavam as vozes agitadas.
– Bloqueemo-la, antes de entrar na cidade! – repetiam com força.
Do lado de lá do canal, dentro das muralhas, a cidade começava a iluminar-se com as chamas de milhares de velas e de milhares de candeias. Em cada casa, em cada rua, em cada palácio iluminavam-se as salas, a fim de vencer as trevas que ameaçavam todas as consciências.
Tinha-se apagado uma luz do mundo e cada um tinha medo de enfrentar a noite. Era preciso afastar a escuridão e preparar-se para a espera da manhã, quase com medo que o sol não voltasse no dia seguinte.
Autor: Nicola Vegro
Título: António Secreto
Subtítulo: A força de um Santo
Editora: Paulinas
Ano: 2022
Páginas: 608