1 – Sendo cada instante um recomeço, há um enigma que atormenta o espírito de muitos.
Nesta altura, estaremos a recomeçar a viver ou — tão-somente — a sobreviver? E sobreviver será viver?
2 – Edgar Morin, com a sua centenária sapiência, não hesita: «Sobreviver não é viver».
Matizando um pouco, dir-se-ia que sobreviver não é plenamente viver, não é verdadeiramente viver.
3 – Os mais atentos — à atualidade do mundo e aos estados de alma — vão-se apercebendo de um fenómeno cada vez mais difundido.
Trata-se do chamado «quiet quitting», uma espécie de «desistência silenciosa».
4 – As pessoas ocupam-se, trabalham e lutam por uma vida melhor.
Só que temem — e sabem — que o resultado do que fazem está longe de corresponder às suas expectativas, aos seus esforços e até às suas necessidades.
5 – Deste modo, o nível de satisfação é muito baixo. A dedicação e o próprio excesso de trabalho não são devidamente compensados.
A alternativa é executar somente as tarefas dentro do horário laboral. Se só estas é que são pagas — e, por vezes, mal pagas —, então a tendência é «desistir» (discretamente) de ir mais além.
6 – É certo que, assim sendo, investe-se mais na vida pessoal e familiar, essencial para a harmonia e felicidade.
Sucede que este maior «investimento» faz-se à custa de uma insatisfação muito grande no plano laboral.
7 – Há quem se sinta injustiçado por auferir uma remuneração inferior, prestando os mesmos serviços e em piores condições. Também não falta quem não veja suficientemente reconhecido o empenhamento em fazer subir a produtividade e, nessa medida, os ganhos das empresas.
A sensação dominante é que, trabalhando bem ou mal (e produzindo muito ou pouco), a tradução em salários e prémios é sempre a mesma.
8 – Ao contrário de outros tempos — em que se promoviam manifestações exigindo mais justiça —, agora cada um parece «desistir», limitando-se ao contratualmente previsto.
Paradoxalmente e como notou Eunice Almeida, esta «desistência» acaba por ser uma «resistência». Ou seja, não estando em posição de deixar de trabalhar, são cada vez mais os que não admitem que o trabalho domine as suas vidas.
9 – À partida, ganha a disponibilidade para a família. Acontece que, na base dessa disponibilidade, está uma insatisfação bastante profunda.
Não é por acaso que os episódios depressivos e os suicídios jaz a aumentar exponencialmente.
10 – Já nem verbalizamos o que sentimos. É difícil encontrar alguém genuinamente feliz. Parece que nos arrastamos pelo tempo, derreados por «camadas» de dores intermináveis.
Há, pois, que estar atento. Para que ninguém se sinta coagido a desistir: dos ambientes e das pessoas!
João António Pinheiro Teixeira, in Voz de Lamego, ano 92/45, n.º 4676, 5 de outubro de 2022