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A morte de milhões de pessoas é estatística

«A morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, é estatística».

Nos primeiros 5 meses deste ano, mais de 50 mil migrantes atravessaram as águas do Mar Mediterrâneo. Este aumento exponencial nos últimos anos está diretamente ligado a um aumento do número de mortes nessas águas. Na semana passada mais um naufrágio, a 80 quilómetros de Peloponeso, de uma embarcação precária provocou a morte de mais de quinhentas pessoas, entre elas, inúmeras crianças que fugiam à fome e à guerra!

A par desta tragédia (quase diária!), a comunicação social bombardeou com notícias, minuto a minuto, sobre o desaparecimento súbito e inesperado de uma pequena embarcação, o “Titan”, com 5 tripulantes a bordo, durante uma viagem turística para ver os destroços do famoso navio “Titanic”, naufragado em 1912, a 3800 metros de profundidade. Durante horas e alguns dias, vimos os esforços das autoridades de dois países, falaram especialistas e comandantes da marinha, foram muitos os envolvidos.

O grupo que seguia na viagem dinamizada pela Ocean-Gate Expeditions incluía o fundador e diretor-executivo da empresa, Stockton Rush, de 62 anos, o antigo mergulhador da Marinha francesa Paul-Henry Nargeolet (77), o empresário britânico Hamish Harding (58), o empresário paquistanês Shahzada Dawood (48) e o seu filho, Suleman (19). O preço pago por esta aventura foi de €230 mil por pessoa!

A frase do título é macabra! Da autoria de Estaline, no entanto, choca pelo tão verdadeira que mostrou ser, ainda esta semana, dezenas de anos após ter sido proferida.

Nos últimos dez anos, morreram 26 mil refugiados e migrantes no Mar Mediterrâneo. 2400 em 2022. 441 só no primeiro trimestre de 2023. O mais revoltante é pensar que uma pequeníssima parte dos meios despendidos com o submergível “Titan” salvariam centenas destas vidas.

Daniel Oliveira, no Expresso de dia 23 de junho «Imaginem como viveríamos se os 26 mil refugiados que morreram no Mediterrâneo na última década fossem, aos nossos olhos e nas nossas consciências, tão individualmente humanos como os cinco milionários aventureiros do “Titan”. Como dormiríamos? O segredo da discriminação não é o ódio, é a invisibilidade»

Hamish, Shahzada, Suleman, Paul-Henry e Stockton são pessoas com nomes, rostos e biografias. Conhecemos os detalhes de cada um e por isso se tornaram “familiares”. Mas, cada migrante que arrisca a sua vida também tem um rosto, um nome, uma história, família e amigos. A vida de cada um, perante Deus, vale tanto como quem pagou €230 mil para acrescentar risco à sua vida numa experiência! Para nós, também devia valer, devíamos olhar para cada migrante como uma pessoa, ainda com mais ternura por estarem a tentar salvar as suas vidas!

Daniel Oliveira termina o seu artigo com uma interpelação: «O segredo da discriminação não é o ódio. O ódio só vem depois, se nos confrontamos com a desumanização do outro. O segredo é a invisibilidade do outro. Transformem os cinco aventureiros do “Titan” em milhares refugiados. Reduzam os seus rostos e nomes, com histórias, passados e futuros perdidos a um número. Podem ser os 26 mil que morreram no Mediterrâneo na última década. Sentem alguma coisa?»

Raquel Assis, in Voz de Lamego, ano 93/32, n.º 4712, 28 de junho 2023

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