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Editorial: A fé e a mística do arado

Pedimos emprestado, para esta reflexão, o título do livro do padre Adelino Ascenso: “A Mística do Arado. Busca de um Deus possível”, recomendando a sua leitura. O autor fala da sua vida como peregrino em busca da presença de Deus em ambientes diversos, culturas e religiões diferentes, nos vários continentes. As situações são díspares, muitas delas inóspitas, vivendo com pouca bagagem, com poucos recursos, procurando sobreviver no meio da selva, na montanha, com monges tibetanos, ou garimpeiros homicidas no Brasil profundo, a subir escarpas, a fazer silêncio e meditação, a dormir ao relento. Tudo oportunidades para encontrar o Deus possível.

O Papa Francisco diz-nos que a fé é manufaturável, isto é, passa dos lábios e do coração para a vida, para as mãos. Diríamos que será como produzir (manualmente) uma renda, uma rede, uma teia. As mãos trabalham a fé, levam-na à sua dimensão prática, estendem-se, abraçam, ajudam a levantar os outros, constroem o mundo. A fé também se vive entre os tachos! É mais uma imagem luminosa usada pelo santo Padre para sublinhar a praticidade e concretude da fé que, entra, deve entrar, em todas as dimensões da vida, pessoal, familiar, social, em todas os afazeres, preocupações, nas adversidades e na bonança, das dúvidas e questionamentos, no caminho e na busca.

Não basta lançar a semente à terra, é necessário cuidar da terra, lavrar ou cavar, arar, revolver a terra, arrancar as ervas daninhas, para que a semente (ou a planta) tenham as condições para ganharem raízes, crescerem e amadurecerem.

Uma das conhecidas parábolas de Jesus é a do semeador que sai a semear. «Eis que saiu o semeador a semear. E aconteceu que, ao semear, uma parte caiu junto ao caminho: vieram as aves e devoraram-na. Outra parte caiu em terreno pedregoso, onde não havia muita terra, e imediatamente germinou, por não ter profundidade de terra; mas, quando despontou o sol, queimou-se e, por não ter raiz, secou. Outra parte caiu entre os espinhos: os espinhos cresceram, sufocaram-na e não deu fruto. Outra parte caiu em terra boa e deu fruto: germinando e crescendo, produziu uma, trinta; outra, sessenta; e outra, cem» (Mc 4, 3-8). Cabe-nos cuidar para sermos terra boa. Não basta que a semente seja de qualidade, como é a palavra de Deus, importa que estejamos disponíveis para a acolher e dispostos a deixar que nos transforme. Precisamos de esvaziar-nos da nossa presunção e egoísmo, para nos deixarmos preencher pela graça e pela presença de Deus.

A dinâmica da imagem usada pelo padre Adelino faz-nos ver que “o lavrador, quando pega no arado, olha para a frente. Sim, há que olhar para a frente, com esperança, mas olhar, também, mais fundo; não só a extensão, mas também a profundidade. Escavar até às raízes da nossa identidade, localizar os sinais de alerta e intentarmos descobrir as razões mornas. E preciso coragem. Correndo riscos e acolhê-los como sal da existência”.

A propósito, o autor sublinha a necessidade do narrador estar envolvido com a narrativa, fazer parte dela, estar envolvido e implicado. Não podemos convencer ninguém se primeiro não estivermos convencidos do que anunciamos. Não se comunica a fé que não se vive; não se partilha a vida que não existe; não se anuncia o Evangelho sem que seja Boa Nova na nossa vida.


Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 93/13, n.º 4693, 15 de fevereiro de 2023

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