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A dificuldade em escutar o que se ouve

Ouvir e escutar! Por certo já ouvimos alguém a distinguir uma coisa da outra, o ouvir do escutar. Claro que, no dia a dia, são termos equivalentes. Ouve, presta atenção! Estás a ouvir? No evangelho, Jesus usa expressões como “quem tem ouvidos, oiça”, “digo-vos a vós que Me ouvis”, “as minhas ovelhas ouvem a minha voz”!

A distinção de um termo em relação ao outro até pode ser mais académica que real, mas converte-se num desafio. Numa perspetiva espiritual, o escutar leva-nos a “ouvir” com o coração. Ouvir não nos implica. Ouvimos muitos ruídos, muitas vozes e muitas propostas. Há quem goste de se ouvir ao ponto de não conseguir ouvir os outros ou, no fundo, ouve ruído e vozes, mas não ouve a pessoa, os seus apelos e sofrimentos, a suas alegrias e preocupações, os seus sonhos. Quantas vezes, num diálogo, apostamos num monólogo silencioso. Todos falamos, falamos e falamos! Quando o outro fala, não estamos verdadeiramente a escutar, estamos a preparar o que dizer a seguir, a arranjar argumentos para contrapor, a pensar numa história para contar, um acontecimento para narrar, um contributo nosso à discussão. E por falar em discussão, ela acontece, muitas vezes, não pela diferença de argumentos ou razões, mas porque os corações estão distantes. É também por isso que numa discussão se alteia a voz. Por certo o outro não é surdo, mas acentua-se a distância de afeto, de compreensão e de carinho, de tolerância e de escuta estão distantes.

O escutar implica-nos, implica sintonizar com o outro, prestar atenção ao que ele nos diz, antes de qualquer julgamento, sem ideias preconcebidas, ter consideração pelo que diz, prestar atenção aos seus conselhos e até segui-los. Com a palavra “escutar” se relaciona a palavra “obedecer”. Obedece quem escuta. Não se trata de subserviência, mas acolher desafios. (Do latim, oboedire, isto é, prestar atenção a…, dar ouvidos, escutar…). Alguém que não escuta, não obedece!

“Escuta, Israel, o Senhor é nosso Deus; o Senhor é um só. Amarás, portanto, o SENHOR, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Que estas palavras que hoje te ordeno estejam no teu coração. Deves repeti-las aos teus filhos e recitá-las quando estiveres em tua casa, quando andares no caminho, ao deitares-te e ao levantares-te. E deves prendê-las como um sinal na tua mão; e serão como uma marca entre os teus olhos. Escrevê-las-ás nas ombreiras da tua casa e nas tuas portas”.

Esta é, por excelência, a oração dos judeus. “Shemá, Israel” ou “Escuta, Israel”. É uma a profissão de fé, que reza o monoteísmo, a fé num Deus único e pessoal. Desde tenra idade, as crianças aprendem a recitar esta oração, várias vezes ao dia. Nós rezamos muitas vezes a oração do Pai-nosso. Os judeus rezam o “Shema”. A escuta envolve todos os sentidos. A audição e o coração. E obviamente que a oração há de levar à vivência. As palavras radicam no coração, o centro dos sentimentos e da sabedoria, o lugar que nos conduz aos outros, que nos convoca a amar a Deus, pois aí O escutamos, aí Ele nos fala.

Jesus referencia claramente o “Shema”, um mandamento a que Ele agrafa outro: não é possível amar a Deus sem amar o próximo. “Qual o primeiro mandamento?” Perguntam a Jesus, que responde claramente: «O primeiro é: Escuta, Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com toda a tua força. O segundo é este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior que estes» (Mc 12,29-30, cf. Mt 22,37-40; Lc 10,27).

Escutar, antes de mais, a Deus, sintonizar com Ele, coração a coração, para amar, servir e cuidar do nosso próximo! Ouves com o coração! Ouve o coração! E que as palavras de Deus saibam caminhar pela tua alma e por todo o teu corpo, e se façam vida.


Pe. Manuel Gonçalves, in Voz de Lamego, ano 94/31, n.º 4759, de 19 de junho 2024.

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